Uma história que é lida e relida, em diferentes linguagens como prosa, poesia, quadrinhos ou cinema, precisa ter algo diferente a dizer a cada vez que estabelece uma conexão com o leitor-espectador. Se o tempo passa e a obra perde a capacidade de participar da realidade do público, ela cai no esquecimento.
As obras “clássicas” são assim chamadas porque guardam a vocação de sempre trazer novos significados e pensamentos a cada leitura. ‘A Odisseia’, de Homero, poeta da Grécia Antiga, que compõe com ‘A Ilíada’ a matriz épica da literatura ocidental, influenciando toda a produção artística que veio depois, mostra-se de uma incrível atualidade se o leitor tiver interesse em enxergar além do enredo.
Esses livros são formadores da nossa humanidade e referências para o universo da mitologia grega. E não há desculpa para não ler: as livrarias têm diversas edições, algumas delas em quadrinhos; uma delas é uma versão para o público jovem, enfim, há várias alternativas para ter acesso a essas narrativas que vão dar um banho de conhecimento no leitor. Enquanto ‘A Ilíada’ valoriza o caráter militar da Guerra de Troia, ‘A Odisseia’, de caráter social, conta os desafios da volta do rei de Ítaca, Ulisses, para casa depois de participar da guerra.
Ulisses é um ardiloso lutador que ousa desafiar os deuses. Em um de seus enfrentamentos, ele cega o ciclope Polifemo, filho de Poseidon, deus do mar, que furioso dificulta seu retorno por dez anos. Ao vencer suas batalhas, Ulisses conquista um lugar entre deus e homem. “O céu e a terra, os homens e os deuses se confundem ou se aproximam grandemente: o Olimpo não é uma região abstrata, colocada simplesmente no alto, no céu, mas uma real montanha da Tessália, posta entre a terra e o céu, porque os deuses deviam estar próximos dos homens e estes daqueles, de tal modo que as qualidades e até os defeitos se comunicassem de uns para os outros”, escreve Silveira Bueno, em prefácio de 1954, para a edição em verso português, assinada por Manoel Odorico Mendes.
Ao ler ‘A Odisseia’, o desafio aos deuses é um aspecto substantivo que desponta da narrativa. Esse desafio se repete na obra máxima da literatura moderna no século 20, ‘Ulisses’ (1922), do irlandês James Joyce (1882-1941), que remonta o mito por meio de conexões com o passado do mundo helênico para interpretar a condição humana no presente. As ironias de Joyce com as religiões e valores estabelecidos também representam desafios aos deuses. E hoje, quando as religiões já não têm a mesma importância, fica para o leitor a pergunta: o que significa tal desafio num mundo em que os deuses são o capitalismo, o mercado, a meritocracia, a bolsa de valores, os antidepressivos…