Fantasmas debocham das crenças de Marcelo Mirisola

O fantasma de um arquiteto “desreprimido” que habita uma casa em Campos do Jordão desafia as crenças do escritor Marcelo Mirisola no conto ‘A casa das pedras’, publicado no livro ‘Memórias da sauna Finlandesa’, de 2009, um dos últimos trabalhos do escritor paulista que atualmente mora no Rio de Janeiro.

Mirisola explora as coisas rejeitadas e esquecidas para escrever

No conto, o narrador aluga a casa para ter uns dias de sossego, mas encontra uma habitação oprimida por araucárias ao redor, e feita com pedras e muito vidro, o que revela seu interior. Suspenso nesse clima frio e estranho, sem a zona de conforto da casa isolada, Mirisola vislumbra na transparência os fantasmas de seus proprietários, uns hippies maconheiros que nos anos 70 a construíram exatamente porque acreditavam que o movimento de abrir a mente ocorre de fora para dentro.

“Consta que para abrir as ‘portas da percepção’ o sujeito tem de fazê-lo de dentro para fora, e não o contrário. Isso é básico, e é tipicamente humano”, escreve Mirisola, rechaçando a teoria libertária de seu fantasma. Essa convicção, no entanto, desaba ao longo da história, e o escritor revela para o leitor uma característica, ou um talento tão necessário à arte de escrever, que é a capacidade de se deslocar no mundo das opiniões e ver a realidade a partir do lugar do outro.

A fantasmagoria de Mirisola está presente em outros contos do livro – esse é um indicador do registro autobiográfico em sua obra – como na história ‘Olhos de cais’, em que ele se projeta como alguém que está sempre abandonando pessoas e objetos, e rejeitando a memória dos fatos. Ele chega a dizer que o garoto que foi na infância virou um fantasma na idade adulta, “e sua condenação foi não ter morrido”. Essa abordagem é uma visão que quebra a ilusão da criança que vive em cada um de nós, é uma espécie de franqueza áspera.

O escritor não faz questão de se esconder ao criar personagens. No conto ‘Encontro no Cervantes’, ele se coloca como um ‘travecão’ com 300 gramas de silicone em cada teta, que está com outro travesti em um sujo e tradicional bar do Rio, o Cervantes, e lá acaba se metendo em uma conversa alheia sobre samba de raiz, em uma situação que tem traços tão ambíguos quanto a cultura da homossexualidade.

Castelos e bolhas feitos de sonhos

Neste trecho do conto ‘Valentina e o laranja intenso’, Mirisola exerce um lirismo que se projeta a partir de sensações comuns no cotidiano:

“Nem seria preciso dizer: bolhas de sabão são feitas com o mesmo material dos castelos que se desmancham na areia. Sonhos. Não há diferença. Apenas uma questão de localização. Se eu fosse poeta, e se acreditasse em sonhos, diria: um se desmancha no ar, e outro é arrastado pela correnteza”.

Memórias da sauna finlandesa,

Marcelo Mirisola, Editora 34, São Paulo, 2009, 175 págs., R$ 30.

Foto: Guto Zafalan

Gilberto Freyre e o mito da democracia racial no Brasil

A Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que será realizada de 4 a 8 de agosto, vai render este ano homenagens ao livro Casa Grande & Senzala, do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987). A obra será debatida na conferência de abertura e em mais três encontros, reunindo seus estudiosos, como o cientista político e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que a encara como perene, duradoura.

O aspecto central do livro está em sua contribuição para a investigação da identidade brasileira, afinal, ainda hoje é difícil dizer quem é o brasileiro. A primeira edição foi lançada em 1933. Desde então, mais de 50 edições foram publicadas. A obra é apreciada nos círculos acadêmicos, como objeto de teses e dissertações.

Muitas dessas produções versam sobre seu caráter dualista: de um lado, Freyre revela como pensava e agia o colonizador a partir de 1532, quando efetivamente começou o processo de ocupação do país; de outro, mistifica o desenvolvimento da sociedade, colocando o negro em uma posição de superioridade cultural em relação ao índio naqueles tempos.

Neste trecho, Freyre mostra seu lado mitológico: “As populações de origem negra, na Bahia por exemplo, não têm aquele ar sorumbático dos populares sertanejos do Nordeste, quando de origem principalmente indígena. Na Bahia, tem-se a impressão de que todo dia é dia de festa”.  Por essa linha, o escritor sustenta que o negro foi “o maior auxiliador do branco” na empreitada colonizadora do país, chegando a ver o Brasil como uma democracia racial.

Atualmente, a crítica à obra tende a reconhecer uma interação entre os aspectos críticos e míticos do livro, que são vistos como elementos formadores de uma política da memória para um país que se mostra carente de história. “Tal política visaria fazer um ajuste de contas com o trauma da escravidão”, afirma Alfredo César Melo, professor-assistente de literatura lusófona na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, em artigo sobre o livro. Para Melo, esse movimento reflete a característica da cultura brasileira de equilibrar antagonismos.

O livro vale também pelos registros históricos de hábitos e comportamentos do brasileiro, que revelam a origem de coisas que nos rodeiam hoje. Esse é o caso da tapioca e outras iguarias da culinária brasileira. “Não é só em relação ao beiju (tapioca), mas a tudo quanto é comida indígena, a Amazônia é a área da cultura brasileira mais impregnada de influência cabocla: o que aí se come tem ainda gosto de mato”.

Casa Grande & Senzala,

Gilberto Freyre, Global Editora, 2006, SP, 726 págs.

Leia o artigo do prof. Alfredo César Melo:

http://migre.me/Vyr2



João Antônio encontra poesia no mundo da malandragem

Uma história da malandragem paulistana, que se ambienta em salões de sinuca no início dos anos 60, embala as desventuras de três amigos que saem em busca de partidas em vários bairros da cidade para superar a falta de dinheiro.

O cenário inicial é a Lapa de Baixo, onde ainda hoje estão o mercado municipal e a estação de trem. Por ali passam proletários, gente pobre, humilde e sem instrução, mas honesta. Eles são o alvo dos jogadores, seus “coiós-sem-sorte”, que chegam a perder indenizações de toda uma vida de trabalho nas caçapas viciadas dos malandros.

Esse é o roteiro do conto Malagueta, Perus e Bacanaço, que dá título ao livro do escritor e jornalista João Antônio Ferreira Filho (1937-1996), lançado em 1963.  A obra traz outros oito contos, entre eles, Afinação da Arte de Chutar Tampinhas, história famosa que também é referência do autor e que trata dos sonhos e desilusões de um garoto pobre que jogava futebol na Moóca, fumava escondido e gostava de repicar na frigideira em rodas de samba.

O livro recebeu quatro prêmios: dois Jabuti (revelação de autor e melhor livro de contos), prêmio Fábio Prado e da Prefeitura de São Paulo. Em 1976, a história foi para as telas do cinema com o título O Jogo da Vida, sob a direção de Maurice Capovilla e com os atores Lima Duarte, Gianfrancesco Guarnieri e Jofre Soares. O roteiro foi escrito pelo próprio João Antônio.

O escritor era de família humilde e trabalhou em funções mal remuneradas antes de lançar seu primeiro livro. João Antônio é considerado um autor de estilo arguto – trata das coisas mais sutis, revelando a engenhosidade e espiritualidade de personagens nas situações de penúria e marginalidade. Além dos malandros, seus personagens são os moradores de rua, pobres e miseráveis que as classes endinheiradas preferem não ver.

Esse estilo se traduz em uma escrita com grande poder de transmitir imagens, o que, aliás, é próprio da experiência literária. Mas no caso de João Antônio esse exercício é feito com o efeito das palavras que ele tira da boca do povo para transformá-las em frases curtas, de impacto certo e fulminante.

Veja como ele descreve o anoitecer:

“Bacanaço deu com a primeira luz. Lá no meio da cara da locomotiva. Num golpe luzes brotaram acima dos trilhos dos bondes. Os luminosos dos bares se acenderam e a fachada do cinema ficou bonita. A Lapa trocava de cor”.

Confira agora a imagem do malandro:

“Para final – Bacanaço era taco melhor, jogador maduro, ladino perigoso da caixeta, do baralho e da sinuca, moreno vistoso e mandão, malandro de mulheres. Camisa de Bacanaço era uma para cada dia. Vida arrumada. De mais a mais, Bacanaço tinha negócio com os mascates, aqueles que vendiam quinquilharias e penduricalhos nas beiradas da Lapa-de-Baixo, e era um considerado dos homens do mercado. Malandro fino, vadio de muita linha, tinha a consideração dos policiais. Andar com Bacanaço, segui-lo, ouvi-lo, servi-lo, fazer parceria, era negócio bom. Era quem primeiro cantava de galo, Bacanaço não olhava na cara dos desconhecidos. Impunha-se-lhes oprimindo, apequenando. Mandava primeiro, uma ruga na sobrancelha, sempre abespinhado. Desses que quando a conversa não interessa vão mandando para a casa do diabo. E se houver reaproximação já batem, já xingam, já correm o pé, dão cabeçada, deixam o sujeito estirado na calçada. Agora, se gostasse, gostava.”

Malandragem na história

A malandragem e seus personagens durante o século 20 são manifestações de expressões socioculturais fundamentais para que se possa conhecer a identidade brasileira, enfim, os objetos do desejo e os fantasmas que percorrem esse modo de ser e ver.

No percurso da história, a imagem do malandro sofreu mutações em seus dois principais territórios – Rio de Janeiro e São Paulo. A malandragem é um fenômeno de um país em seu processo de urbanização, enquanto o cangaço declinava no sertão, no mundo pré-urbano.

Nos anos 20 e 30, Madame Satã despontou na Lapa do Rio quase como uma figura mitológica, temida e desafiadora. Como todo malandro, Satã tinha seu território onde ele próprio era a lei, uma espécie de Estado paralelo. Com Bacanaço e sua trupe não é diferente. Na Lapa de Baixo ele impõe sua razão, tanto quanto fazem hoje os traficantes e o crime organizado em suas áreas demarcadas.

Mas no percurso da história, a figura do malandro foi domesticada pela mídia até cair de uso. Enquanto Madame Satã tinha o policial como eterno inimigo – ele próprio disse ter encarado mais de 3 mil brigas com policiais –, Bacanaço é diferente, a polícia lhe dedica respeito, o que já denota uma mudança da imagem do malandro no tempo. Isso, no entanto, não chega a dizimar o conflito com o poder. No caso da história de Bacanaço, esse conflito é carregado para o plano simbólico do jogo de sinuca. Seu grupo enfrenta na Água Branca o dono de uma roda de jogo chamado inspetor Lima, um policial aposentado, “nem malandro, nem coió” e que diz: “- A maior malandragem, meus filhos, é a honesta”. Sem dúvida, uma afirmação que lembra a Ópera do Malandro, de Chico Buarque:

“…mas o malandro pra valer
não espalha
aposentou a navalha
tem mulher e filho
e tralha e tal
dizem as más línguas
que ele até trabalha
mora lá longe e chacoalha
num trem da central”.

Malagueta, Perus e Bacanaço,

João Antônio Ferreira Filho, ed. Civilização Brasileira, 1975, RJ, 159 págs.

Onde Encontrar: www.estantevirtual.com.br.