O dramaturgo e escritor Plínio Marcos (1935-1999) tem uma marca registrada, que é contar histórias de gente simples e sofrida, que sempre carece de alguma coisa fundamental na vida, seja um lar, uma família, um amor ou a própria consciência que permita andar na linha, respeitar o outro e conviver em sociedade.
No livro ‘Histórias das Quebradas do Mundaréu’, lançado em 1973 e relançado em 2003, o escritor apresenta 43 contos, organizados segundo os temas ‘bandidagem, futebol, samba, macumba, cadeia, amor e diversos’. Essas histórias na verdade foram originalmente publicadas no jornal ‘Última Hora’, de São Paulo, dirigido pelo jornalista Samuel Wainer (1910-1980).
Segundo o escritor Pedro Bandeira, que assina no epílogo do livro uma carta a Plínio Marcos “no céu”, quando o escritor chegava na redação com os originais manuscritos a lápis havia certo alvoroço dos jornalistas em torno dele para ler as histórias em primeira mão.
É claro que são todas histórias de loucura, nas quais os personagens se projetam por meio de seus desejos mais perversos e proibidos. Mas em sua carta Bandeira adverte que Plínio não fala “contra as coisas”, como muitas vezes foi taxado: “Todos os teus personagens são vítimas do absurdo sistema de exclusão da nossa sociedade, e é a favor deles que tu fala”.
Nos contos, Plínio Marcos observa e escuta histórias, como que flanando no mundo das favelas e do porto de Santos, sua cidade natal. “Eu sou um repórter de gente simples. Conto seus amores, suas desilusões, suas pequenas glórias e suas lutas cruentas para escapar da miséria”, afirma na apresentação.
Ele escreve por meio de frases feitas, lugares-comuns e gírias, como é a fala no cotidiano, e consegue com isso usar a força da linguagem para provocar no leitor imagens de realismo e de uma crueldade aparente, que se dissipa sob a compaixão pelo outro, que está nas entrelinhas de sua prosa.
Há momentos em que Plínio apela ao recurso da literalidade das situações para impactar o universo do leitor. Isso é o que ele faz, por exemplo, no conto ‘Se não tem tu, vai tu mesmo’, em que narra a tragédia de um ‘ladrão de galinhas’, expressão que estamos acostumados a usar apenas metaforicamente para designar quem vive do pequeno crime. Nesse processo criativo, fica claro que não há fronteira entre arte e loucura, pois a literalidade das situações é também uma manifestação da psicose.
Outro conto que me chamou a atenção foi ‘Uma história do Exu Gaiato’ sobre a desventura de Dona Isaldina, que o narrador descreve como uma “coroa” e “um bagulhão velho e piranhudo”, da favela da Barra do Catimbó, que recorre a uma mãe-de-santo para ver uma macumba que lhe traga um homem para aliviar a solidão. A tal da Babá Zenaide de Angola vai, então, em busca de um serviço da pesada, dispensa os orixás e convoca “a esquerda em peso”, uma legião de exus. Mas todos recusam o desafio, restando apelar a Exu Gaiato, a quem ela promete uma farta oferenda com cigarros, pipoca, cachaça “e muitos outros badulaques”. O exu surge na história como um personagem real, expressando a força da espiritualidade na sabedoria popular.
Histórias das Quebradas do Mundaréu,
Plínio Marcos, Mirian Paglia Editora de Cultura, SP, 2003, 180 págs.
Foto: Marcos Muzi