As obras clássicas são antídotos contra a falta de ideias e o tédio das verdades absolutas que engessam a nossa visão de mundo. Recorrer a um desses livros que nunca envelhecem significa oxigenar a mente. Algumas histórias podem até mesmo marcar a experiência emocional do leitor, como se ele tivesse testemunhado um acontecimento trágico.
É um pouco desse modo que o leitor vai se sentir ao mergulhar na pequena novela “A metamorfose”, do escritor Franz Kafka (1883-1924), que nasceu em Praga (atual República Checa), era de origem judaica e ainda hoje é considerado um dos maiores ficcionistas do século 20. São de sua autoria também os textos “O processo” e “Carta ao pai”, emblemáticos de uma pequena produção literária que resultou de apenas 12 anos de trabalho do escritor, mas que representou de modo incomum a condição do homem moderno, seus estados de opressão, abandono e isolamento.
Em “A metamorfose”, publicada originalmente em 1912, Gregor Samsa é um caixeiro-viajante que há cinco anos trabalha em uma empresa para pagar dívidas da família e num dia de inverno e névoa acorda transformado em um grande inseto, não conseguindo mais cumprir sua rotina de trabalho. Gregor vive com os pais e uma irmã mais nova, que até então dependem de seu salário para sobreviver.
Aos poucos, o leitor vai percebendo que a transformação em inseto é uma metáfora de alguém que, movido por uma força interior desconhecida, renuncia ao lugar que ocupa perante a família e a sociedade, caindo em isolamento. É como se Gregor não fosse mais capaz de cumprir o seu papel, acometido por um estado depressivo ou melancólico.
A transformação em inseto é assim um insulto que Gregor impõe a si próprio e a quem está à sua volta, visto que seu sentimento de autoestima se mostra perturbado, porque já não consegue mais reagir diante da opressão de quem não tem outra saída senão trabalhar ainda por mais cinco ou seis anos para pagar a tal dívida dos pais.
Na história, Kafka mostra o isolamento como resultante de uma cisão entre Gregor e a família, que não o aceita em sua nova condição. Esse é um problema que continua um tanto atual. São muitas as pessoas à margem da sociedade, abandonadas em manicômios, hospitais ou mesmo nas ruas, porque não correspondem às expectativas de seus familiares ou até mesmo da sociedade de consumo, que só valoriza quem está de acordo com a ideologia da mercadoria.
A metamorfose,
Franz Kafka, tradução de Marcelo Backes, L&PM Editores, Porto Alegre, 2001, 144 págs.
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