Entre anjos e cangaceiros

Benjamin Abrahão em visita ao ‘Jornal do Recife’, em 1923
Benjamin Abrahão em visita ao ‘Jornal do Recife’, em 1923

O sofá e o novo livro do historiador Frederico Pernambucano de Mello formam um casamento perfeito. A narrativa de ‘Benjamin Abrahão: entre anjos e cangaceiros’, que resultou de uma pesquisa cuidadosa, seduz com suas figuras de linguagem ao estilo das obras de ficção.

O leitor é conduzido ao universo cultural e social do Nordeste, em meio aos personagens que habitam o imaginário popular há décadas, como padre Cícero, do Juazeiro do Norte (CE), e Lampião.

Benjamim Abrahão, imigrante de origem síria, foi jornalista, comerciante, ourives e, principalmente, secretário particular de padre Cícero e documentarista e fotógrafo do reinado de Lampião no sertão nos anos 30. Foi, portanto, como um súdito que serviu a dois senhores, ou a Deus e ao Diabo, exercendo uma ambiguidade que o colocou como testemunho de acontecimentos históricos do Nordeste.

Esse foi o caso, por exemplo, da articulação que aproximou padre Cícero e Lampião no projeto de tentar desbaratar a Coluna Prestes, que nos anos 20 cruzou o País manifestando o descontentamento com a República Velha. A investida naufragou na recusa do governo federal em financiar as tropas, e depois disso Lampião, que havia recebido o título de ‘capitão’, volta à ilegalidade promovendo crimes em represália ao acordo não cumprido.

A linguagem que o historiador desenvolve no livro pode ser tributada a um estilo apurado a partir de sua experiência como discípulo do sociólogo Gilberto Freyre, nos anos 70 e 80. Para o autor do prefácio Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, professor de sociologia da Universidade Federal do Ceará, a narrativa “situa-se a meio caminho entre o ensaio rigoroso e a ficção”.

A experiência de Pernambucano de Mello com o tema está também por trás da câmera que registrou o filme ‘Baile Perfumado’, de 1996, dirigido por Paulo Caldas e Lírio Ferreira. O historiador foi assessor da equipe que fez o filme, também centrado nos desafios de Benjamin Abrahão para filmar o rei do sertão.

O livro de Pernambucano de Mello surgiu de um documento especial, trazendo pela primeira vez seu conteúdo a público. Trata-se da caderneta de anotações de Benjamin Abrahão, escrita alternadamente em árabe e português, recolhida pela polícia no momento de seu assassinato, em 1938, aos 37 anos de idade. O historiador trabalhou três anos, assessorado por dois professores de árabe, para decifrar o conteúdo, que esclarece pontos obscuros da história, como a relação entre padre Cícero e Lampião.

Frederico Pernambucano de Mello - Benjamin Abrahão - capa2Benjamin Abrahão: entre anjos e cangaceiros,
Frederico Pernambucano de Mello, editora Escrituras, SP, 2012, 351 págs.

Foto: Divulgação

Cangaceiros em defesa de sua missão ética

Image
Lampião (à esq.) e Esperança são fotografados com indumentária e mosquetões em Juazeiro

Na época do cangaço no Nordeste, no começo do século passado, roubar gado era crime mais grave do que matar uma pessoa. Por volta dos anos 20, esse era um valor vigente no sertão porque a pecuária era a única riqueza naquelas terras, marcadas pela seca e pelo isolamento econômico e cultural.

Assim como os valores, outros traços e características se encontraram no homem do sertão a ponto de ser difícil afirmar que o cangaceiro se define exclusivamente por um fator, entre o desejo de vingança, a vocação para a “profissão”, ou a possibilidade de fugir ou se proteger da Justiça ante um crime praticado.

A investigação do universo do cangaceiro, em profundidade histórica, social, econômica e cultural, está nas páginas de ‘Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil’, do historiador Frederico Pernambucano de Mello, que conta com nova reedição. A obra original é de 1984 e o prefácio à primeira edição é assinado por Gilberto Freyre (1900-1987), com quem Mello trabalhou.

Com pesquisa de caráter multidisciplinar, Mello vai além de teses ortodoxas ou ideológicas sobre o tema, como a definição de que o cangaceiro era resposta à exploração dos trabalhadores pelos latifundiários. Não só há outras realidades que se mostram, como existe uma dinâmica na linguagem que o cangaceiro usa para justificar seus atos e se inscrever no universo social do sertão com uma imagem lendária e sedutora.

O historiador chama essa forma de representar do cangaceiro de “escudo ético”, uma espécie de moral da vingança para restabelecer a honra: “A necessidade de justificar-se aos próprios olhos e aos de terceiros levava o cangaceiro a assoalhar seu desejo de vingança, a sua missão pretensamente ética, a verdadeira obrigação de fazer correr o sangue dos seus ofensores”, afirma.

Essa fala comum, no entanto, muitas vezes não se traduz em violência, como conta o historiador sobre Lampião, que não só não vingou a morte do pai e questões sobre gado, como propôs um acordo de paz com um de seus desafetos. Mello esmiúça assim as contradições do cangaço: o que está em jogo nessa linguagem é a vaidade do cangaceiro, alguém que Mello compreende como “individualista, sobranceiro, autônomo, desacostumado a prestar contas de seus atos, influenciado pelos exemplos de bravura dos cavaleiros medievais”.

Image

Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil,

Frederico Pernambucano de Mello, editora A Girafa, SP, 2011, SP, 519 págs.

Foto: Lauro Cabral de Oliveira

‘Sem Lei nem Rei’ traz retrato realista das raízes do cangaço

A vergonhosa discussão dos nichos sociais que queriam desqualificar o voto dos nordestinos no segundo turno das eleições presidenciais – e que culminou com lamentáveis manifestações de preconceito disseminado na internet – revela uma postura de quem não quer, ou não aceita, olhar para si mesmo, para as raízes que constituem os nossos traços culturais e que são a própria alma do país, não importando se no norte ou no sul.

Maximiano Campos

A alma do brasileiro pulsa, por exemplo, na obra do escritor Maximiano Campos (1941-1998), que tem no romance ‘Sem Lei nem Rei’ o ponto alto de sua criação literária.  Publicado em 1965, esse romance é fundamental como referência da cultura sertaneja para o escritor e poeta Ariano Suassuna, que assina no livro um ensaio anexo sobre a formação da literatura sertaneja.

O livro traz uma epopeia de cavalaria sertaneja que narra a gênese de um cangaceiro, chamado Antônio Braúna, um matuto que forma bando e sai em busca de vingar a morte de seu irmão e de um tapa na cara que levou do coronel da Barra, chefe político no município de Mimoso. Depois de um ataque à fazenda do coronel em que verificou precisar de mais homens, Braúna se associa ao líder da oposição, o coronel Wanderley, cujos desafetos chamam de ‘coronel Tiririca’.

Indignado com o ataque de Braúna, o coronel da Barra pede reforço ao governador, que lhe envia uma volante de cerca de 20 homens na caçamba de um caminhão. Começa assim a mobilização para uma guerra costurada pelos interesses políticos, já que em seis meses haverá eleições. É por esse motivo, aliás, que a guerra se estende pelo sertão adentro depois que o coronel Wanderley suspende a ideia de atacar a fazenda adversária durante a campanha eleitoral.

Sobre o pano de fundo do regionalismo e da epopeia, o livro tem uma dimensão social, é também um retrato de como se fazia política de forma autoritária, arbitrária e violenta durante a história das primeiras décadas da República no país. No caso de Mimoso, não importava o lado que estivesse no poder, sempre ditado pelos coronéis, um título metafórico para os grandes latifundiários que faziam curvar a política aos seus interesses.

Não faltam no livro exemplos dessa truculência ditada pelo poder capitalista vigente, e que enseja a criação de um poder paralelo por meio de proteção dada aos jagunços. Entre um cangaceiro e um coronel, o denominador comum é que justiça é igual ao exercício da vingança, um valor que ainda hoje está presente na cultura do país – basta ver como se processa a violência nos dias de hoje.

Quando política era exercício de violência

Neste trecho, Maximiano Campos sintetiza o que era a vida em Mimoso:

“Assim vai levando a vida o povo de Mimoso. Entre as divergências do coronel da Barra e do coronel Joaquim Nascimento Wanderley. Não podendo aguentar o ônus de política tão violenta, os habitantes vão se filiando a um ou outro coronel, e em torno deles vão gravitando, acompanhando as suas vitórias e as derrotas na política. Assim, nesses 15 anos, tem durado o mando desses dois homens, revezando-se na chefia do município, de acordo com o governo, um de cima e o outro de baixo. E o que está de cima faz exatamente o mesmo, sempre um pouco mais aperfeiçoado no que protestava fazer o seu adversário, quando estava em igual situação”.

Sem Lei Nem Rei,

Maximiano Campos, Ed. Melhoramentos, São Paulo, 1988, 142 págs.

PS (16.dez.2010) – A editora Escrituras está lançando uma nova edição do livro, que anteriormente era publicado pela Melhoramentos. Para quem quiser conhecer a nova edição, basta acessar o site da editora.

Historiador revela ‘a fala’ dos objetos dos cangaceiros

Em busca dos significados do discurso silencioso dos objetos – roupas, armas e utensílios – que pertenceram aos cangaceiros do Nordeste nos anos 20 e 30, o historiador Frederico Pernambucano de Mello, que atuou na equipe do sociólogo Gilberto Freyre, na Fundação Joaquim Nabuco, começou em 1997 uma pesquisa que culminou no livro Estrelas de couro – a estética do cangaço (editora Escrituras), lançado na última quinta-feira em Recife (PE).

Subgrupo do cangaceiro Pancada na rendição à volante, em 1938: cada peça do vestuário tinha desenho exclusivo

O livro completa uma trilogia sobre o cangaço ao lado dos títulos Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil (1985) e Quem foi Lampião (1993), esta uma biografia do líder maior dos insurgentes do sertão, Virgulino Ferreira.

Com mais de 300 fotos históricas e de objetos, o livro é um trabalho de pesquisa interdisciplinar que busca desvendar a simbologia do imaginário do cangaceiro, que desde os anos 20 passou a compor um universo heróico popular no Brasil. Até hoje, as histórias inspiram escritores, diretores de cinema e produções de TV.

O autor possui o maior acervo de pertences pessoais dos cangaceiros, com 160 peças. A produção do livro também recebeu contribuições de imagens de diversas instituições de pesquisa. A primeira mostra da coleção que resultou no livro foi feita na Bienal de Arte de São Paulo, de 2000.

No prefácio, o escritor Ariano Suassuna assinala que o cangaço é uma expressão social e cultural que começou a ser compreendida com mais profundidade em 1973, quando um escritor pernambucano chamado Maximiano de Campos publicou o romance Sem lei nem rei. Esse título remete o cangaço às origens da história do país, quando os colonizadores destacavam seu encantamento com a possibilidade de viver em “estado de natureza”, como os índios que aqui encontraram.

Esse estado, no entanto, logo se revela como espírito de insurgência, de rebeldia, frente à sanha do colonizador de mercantilizar tudo o que havia nas terras sem poupar da violência o ser humano e a natureza. Foi assim que muitos índios e escravos se rebelaram, fundando estados paralelos, como as nações quilombolas e a revolta de Canudos, na Bahia. A tradição dessa rebeldia se coloca atualmente na violência urbana, sobretudo nas vertentes do crime organizado.

Bornais eram confeccionados à mão: cangaceiros lutavam e costuravam

O trabalho de pesquisa de Mello contribui para que se compreenda o caráter duplo da psicologia do personagem épico do cangaceiro, que é expressa ao mesmo tempo por um ‘orgulho de si mesmo’ e um ‘escudo ético’, que o faz ser leal ao seu grupo de modo exagerado. Para Suassuna, a teoria de Mello “foi a única que explicou a mim próprio os sentimentos contraditórios de admiração e repulsa que sinto diante dos cangaceiros”.

Blindagem mística e anseio estético

Os trajes e equipamentos dos cangaceiros têm uma estética afetada por um sistema de significados que busca dar proteção ante a morte, já que ela é tão evidente em seu dia a dia. “Por conta da natureza mágica de muitos desses signos e da profusão de seu emprego disseminado por todos os ângulos da vestimenta, pode-se ter como comprovadas as palavras de velhos cangaceiros ao expressar, de modo compreensivelmente difuso – não há exatidão de confissões do tipo – alguma coisa que traduziríamos como blindagem mística, a dividir atenção com o puro anseio estético”, afirma Mello.

Um dos objetos que expressa bem essa procura de blindagem é o ‘caborje’, um saquinho com uma oração escrita, amuleto ou patuá que o cangaceiro mantém no lenço encardido amarrado ao pescoço.

Os objetos básicos dos cangaceiros são chapéu, bornal, cartucheira, talabarte (cinturão), coldre, perneira, luva, cantil, alpercata e as armas. Essa vestimenta compõe o que Mello chama de “imagem síntese”, celebrando a duplicidade de que fala Suassuna, um espírito que é voltado para o religioso e o profano ao mesmo tempo.

As roupas e objetos dos cangaceiros são expressão de arte no corpo. A linguagem dessa vestimenta tem claras ligações com a história. No período da colonização, os escravos também usavam o corpo como suporte para suas criações – a capoeira, entre elas – já que o corpo era seu único instrumento de defesa perante a violência do colonizador.

Estrelas de couro – a estética do cangaço,

Frederico Pernambucano de Mello, editora Escrituras, SP, 2010, 253 págs.