Morte em Macondo

Gabo – Maior representante do realismo fantástico na literatura hispânica (foto: divulgação)
Gabo – Maior representante do realismo fantástico (foto: divulgação)

“Na morte a gente vira um fantasma, um fantasma para o outro, para quem fica”. Ouvi essa voz em um sonho, depois da notícia da morte do escritor colombiano Gabriel García Márquez, na última quinta-feira. Ao saber do fato, recuperei um episódio marcante da leitura de ‘Cem Anos de Solidão’, romance mais famoso de Márquez, lançado em 1967 e que se tornou expoente máximo do realismo fantástico, gênero que prosperou na América Latina nos 60 e 70 e também é representado por nomes como Julio Cortázar, Jorge Luis Borges e Juan Rulfo.

A cena que retornou é centrada no assassinato de Prudencio Aguilar pelo patriarca da história, José Arcadio Buendía, que enterra uma lança no pescoço do adversário por conta de uma injúria contra sua esposa, dita em uma rinha de galo. Macondo, o vilarejo imaginário que é cenário do romance, surge como desdobramento desse crime. O fantasma de Aguilar se instala na casa de Buendía, atormentando também sua esposa, que chega a espalhar bacias com água pela casa para o fantasma lavar seu ferimento. O patriarca se vê assim obrigado a buscar outro lugar para viver e se livrar do fantasma.

O realismo fantástico é uma narrativa que explora a dimensão mítica do pensamento, que valoriza a imaginação que brota com a superstição, o medo e as figuras que atormentam o ser humano. Mas uma obra de realismo fantástico nunca é apenas um produto da imaginação, pois seu conteúdo político, social e histórico se articula com um período em que a América Latina era dominada pelas ditaduras militares.

A política nunca esteve distante do velho ‘Gabo’, como os amigos o chamavam. Em ‘O General em Seu Labirinto’, ele cria uma história sobre a morte de Simon Bolívar, líder venezuelano que no século 19 lutou pela libertação da América Latina, e se tornou fonte inspiradora do presidente da Venezuela Hugo Chávez, em seu “socialismo bolivariano” na luta pela justiça social.

Outra referência para conhecer a obra de Gabo está no cinema, paixão que nos anos 50 o levou a estudar no ‘Centro Sperimentale di Cinematografia’, em Roma, onde consolidou conhecimento e relações para, em 1986, criar a ‘Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Bãnos’, em Cuba. O trabalho na escola envolveu de tal modo o escritor que boa parte do que ele ganhava com direitos autorais era doado à escola. “Garcia Márquez é uma bússola viva, pulsante, pensante, movendo-se na superfície e nas profundezas de sua galáxia interior, de sua imaginação prodigiosa”, afirma Orlando Senna, que foi diretor da Escola de San Antonio e chama o mestre de “filho/pai de Macondo”.

Entre vozes de almas penadas

Juan Rulfo foi precursor do realismo fantástico
Juan Rulfo foi precursor do realismo fantástico

A riqueza da produção latino-americana com os escritores modernos da segunda metade do século 20, como os argentinos Júlio Cortázar e Jorge Luis Borges, ou o colombiano Gabriel García Márquez, é algo que merece lugar seleto na biblioteca do leitor.

Os críticos convencionaram chamar de realismo ‘mágico’ ou ‘fantástico’ a produção desse grupo, que no Brasil também conta com representantes como Murilo Rubião e José J. Veiga.

Mas há um pequeno livro que é fundamental para ingressar nesse universo de obras, porque tem um caráter precursor. ‘Pedro Páramo’, do escritor mexicano Juan Rulfo (1917-1986), é uma novela que influenciou toda essa geração e que faz o leitor mergulhar em um mundo sem fronteiras entre a vida e a morte, ou entre presente e passado.

‘Pedro Páramo’, de 1955, é um dos dois títulos aclamados que Rulfo publicou em vida. O outro é a coleção de contos ‘Chão em chamas’. A escassez de títulos é o contraponto do talento de Rulfo, que traz em sua novela a história de uma busca de identidade que ganha muitos significados no percurso do livro.

Na história, investido de um pedido da mãe em seu leito de morte, Juan Preciado viaja a um povoado chamado Comala, onde vive seu pai, Pedro Páramo. Mas o que o narrador encontra é um lugar deserto, habitado apenas por almas penadas, cujo sofrimento o assombra e causa estranheza.

Nas primeiras páginas, Juan segue viagem em companhia de um arrieiro, Abúndio, que lhe revela ser também filho de ‘dom Pedro’, como era chamado o proprietário de todas as terras de Comala. Logo, no entanto, Juan descobre que Abúndio era uma alma presa aos seus pecados, como todos os outros personagens que encontra.

A narrativa não tem sequência. Os textos se associam livremente como pedaços de memórias que vagam no tempo e no espaço e se manifestam por vozes. Com esse tipo de forma narrativa, o escritor expressa a falta de completude ou de felicidade na vida que as almas movidas pelo rancor não conseguem deixar para trás.

Pedro Páramo é o protótipo do concentrador de terra, movido por vingança e ódio, o que leva à solidão, a um deserto de alma. A novela reflete o contexto histórico da Guerra dos Cristeros, um levante rebelde no fim dos anos 20 no México em favor da igreja e contra o Estado.

Na vida do escritor, essa revolução, quando ele tinha cerca de dez anos, representou a morte do pai e a ruína de sua família, visto que ele era filho de proprietários de terra. A obra tem assim um forte apelo autobiográfico.

 

Juan Rulfo - capaPedro Páramo,

Juan Rulfo, tradução de Eliane Zagury, editora Paz e Terra, RJ, 1996, 162 págs.

Foto:  Divulgação

Contar histórias para sair da obscuridade

O que é contar uma história? Saí com essa pergunta das páginas de ‘Coisas Frágeis’, do escritor e quadrinista inglês Neil Gaiman, que reúne nove contos ao sabor de fantasias que se colocam como nos sonhos, nos deixando entretidos com seus possíveis significados.

A pergunta parece tola ou óbvia, mas pulsa nas histórias do livro desde seu título provisório, segundo o escritor revela na introdução: ‘Essas Pessoas Devem Saber Quem Somos e Contar que Estivemos Aqui’.

Esse título, que inspirou a ideia do livro, é uma referência a um quadrinho de Art Spiegelman, publicado em sua famosa coletânea de tiras ‘A Sombra das Torres Ausentes’. O título também responde a pergunta tola, naquilo que contar uma história tem de mais essencial: quem não diz quem é e por que está aqui vai morrer sem deixar seu registro na história de humanidade.

Gaiman lançou ‘Coisas Frágeis’ em 2006 (foto: Kyle Cassidy)

Já o título ‘Coisas Frágeis’, por sua vez, surgiu de uma frase que Gaiman escreveu ao acordar de um sonho: “Acho… que prefiro me lembrar de uma vida desperdiçada com coisas frágeis, a uma vida gasta evitando a dívida moral”. Gaiman confessa não saber ao certo o significado disso, mas teve a ideia do título ao ouvir a frase, tempos depois, repetida em uma música de uma banda de rock alternativo americana, chamada One Ring Zero.

No livro, onde a questão da importância de contar uma história para dar vazão à vida se coloca com todas as letras é no conto ‘A Vez de Outubro’.  Gaiman personifica os 12 meses do ano e os situa em uma reunião, sentados ao redor de uma fogueira, bebendo e comendo, em que cada um tem sua vez de assumir uma posição de destaque e contar uma história.  Assim, o conto tem outras histórias dentro de si e Outubro nos leva a pensar se podemos escolher “quem somos”.

Em ‘Um Estudo em Esmeralda’, a narrativa de Gaiman mistura dois mundos da literatura clássica, revisitando o personagem Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle, e H.P. Lovercraft, este um escritor americano voltado às histórias de terror. Mas Gaiman faz isso pondo em perspectivas os elementos fantasiosos que permeiam seus contos e também ironizando a investigação dos sinais e vestígios de um crime, afinal, nesta história que regressa ao século 19, o criminoso também sabe usar o método investigativo.

Os leitores que comentam sobre esse livro na rede Skoob destacam que todos os contos são bons e interessantes. Um dos preferidos é também ‘Golias’, escrito para o lançamento do filme ‘Matrix’, lançado em 1999. O conto foi divulgado na internet no site do filme e ainda pode ser acessado. Uma leitora do Skoob classificou o livro como genial e “lisérgico”.

Coisas Frágeis,
Neil Gaiman, tradução de Micheli de Aguiar Vartuni, editora Conrad, SP, 2010, 205 págs.

Ler Cortázar e pensar no sentido da vida

Cortázar é considerado referência do realismo fantástico

Em uma família com diferentes obsessões, uma tia tem medo de cair de costas e, por isso, sempre que se desloca para qualquer lugar mobiliza todos à sua volta, que cuidam para remover obstáculos ou rastros que representem riscos. Movendo-se como um boxeador, com as pernas arqueadas e as costas para frente, a senhora blasfema contra tudo o que possa exaltar seu medo.

Em outra pequena história, a família monta um patíbulo [palanque com estrutura vertical de madeira para enforcar condenados] no jardim na frente de casa, atraindo a atenção dos transeuntes, que se manifestam entre protestos e ameaças. A construção de madeira, no entanto, vira palco de um jantar sob luar, esvaziando os olhares dos curiosos.

As narrativas estranhas estão na base de ‘Histórias de cronópios e de famas’, do escritor belga de pais argentinos Julio Cortázar (1914-1984). O livro foi escrito em Roma e Paris nos anos 50 e publicado em 1962, um ano antes de ‘O jogo de amarelinha’, seu mais famoso romance.

A obra é organizada em quatro partes: manual de instruções, estranhas ocupações, matéria plástica e histórias de cronópios e de famas. Nesta última, Cortázar monta um retrato da sociedade argentina por meio de três classes que ele chama de ‘cronópios’, ‘famas’ e ‘esperanças’. Os cronópios são ligados ao lirismo, à poesia, ao esquecimento, à ingenuidade. Já os famas são compenetrados e racionais; e “as esperanças são bobas”, afirma Cortázar.

O professor de teoria literária Davi Arrigucci Júnior escreveu em um estudo sobre Cortázar, chamado ‘Encontro com um narrador’, que esse estranhamento nas histórias “está na raiz de uma busca poética”. Desse modo, estranhar é tomar algo como desconhecido: abandonar aquilo que é sabido para reconstruir o conhecimento.

Dois exemplos: Cortázar dá instruções para subir uma escada ou dar corda em um relógio como se nunca tivesse visto esses objetos. O jogo de destruir e reconstruir o sentido surge assim como um caminho para despertar a consciência das coisas para as quais estamos cegos, como a disponibilidade para o outro.

O livro desperta sentimentos; seus textos aproximam humor, escárnio, poesia, melancolia e imagens fantásticas. Cortázar é considerado mestre do ‘realismo fantástico’, gênero contaminado pelo surrealismo e que emergiu após a Segunda Guerra Mundial, vislumbrando a falta de fronteiras entre o mundo interior e exterior. As expressões doentias e obsessivas que surgem nas expressões do fantástico permitem a transcendência para o outro lado da vida, aquele que só fica em nossos pensamentos nunca revelados, porque são mágicos e estão fora do padrão de comportamento social.

 

Histórias de cronópios e de famas,

Julio Cortázar, tradução de Glória Rodríguez, editora Civilização Brasileira, RJ, 128 págs.

Foto: Divulgação