Marcelo Simões escreve sobre crime precursor das chacinas familiares

Um crime que ocorreu em Salvador (BA) em 1970 e ficou conhecido como Chacina da Graça inspirou o jornalista e publicitário baiano Marcelo Simões para produzir o romance “Muito além da loucura”, que reconstitui o crime com base em entrevistas e informações do processo de julgamento do assassino.

Simões – Entrevistas e consultas ao processo do julgamento
Simões – Entrevistas e consultas ao processo do julgamento (foto: divulgação)

Seguindo o roteiro real, o texto de Simões mostra como um dos filhos de uma família rica de um comerciante português de tecidos entra em casa de madrugada portando um rifle Winchester .44 e um revólver 38, atira primeiro no pai e depois na mãe, que estavam dormindo, em seguida mata a avó, enquanto ela alcançava o corredor saindo de seu quarto para verificar o que estava acontecendo, e por fim usa o revólver para matar o irmão mais novo, que sofria de esquizofrenia e naquele momento também dormia.

Marcílio Moura Maia, que é o nome ficcional de Marcelino Souto Maia Neto, cometeu o crime depois de planejá-lo ao longo de seis meses para ficar com a herança dos pais. Foi por isso que ele usou o revólver para matar o irmão doente mental, tentando forjar suicídio. Assim, a história passaria longe dele e os jornais diriam que o rapaz esquizofrênico matou os familiares e depois se matou.

Esse ato frio e cruel foi um dos precursores das chacinas familiares no Brasil. Depois dele, casos semelhantes também tiveram impacto na opinião pública, como os de Gil Rugai e Suzane Von Richtoffen. No mês passado, o episódio da família Pesseghini, na Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, retomou esse tipo de tragédia, que parece mesmo aprofundar os domínios da loucura humana.

O livro de Marcelo Simões pertence ao gênero Jornalismo Literário – uma narrativa que faz uma fusão entre jornalismo e literatura, oferecendo ao leitor um texto que tem a forma do romance e é capaz de dar uma dimensão do fato, dos personagens e de seu contexto muito além do que a notícia formal e objetiva do dia a dia pode fazer.

Segundo a escritora e jornalista Marina Moura, que está preparando em parceria com a jornalista Marina Venuto o lançamento de um livro sobre autores brasileiros do gênero, o Jornalismo Literário se coloca para o leitor não por lançar mão de ficção, mas porque amplia a perspectiva do leitor, apresentando as nuances e contradições da realidade: “É o contar mais sobre o fato, não o contar além do fato”, afirma.

Marina também diz que “uma das coisas que desclassificam o Jornalismo Literário é pensar que sua prática aceite a ficção, a invenção e o floreio dos fatos. Não se trata disso, o jornalismo literário não trabalha com a ficção. O gênero tenta, em sua essência, ter uma relação fiel com a verdade”.

Marcelo Simões - capa2Muito além da loucura,

Marcelo Simões, Geração Editorial, SP, 2013, 278 págs.

Leia versão em PDF

O discurso do oprimido na história de Anita Garibaldi

Retrato de Anita pintado por Joaquim R. Ferreira; obra pertence ao Museu Histórico Nacional

O discurso dos excluídos é dos aspectos mais interessantes da história brasileira. Em qualquer período, a evolução do País é rica de conflitos, violência e descaso com a dignidade humana. Na colonização, por exemplo, os poderes econômico e político se instituíram de forma autoritária, provocando a revolta de índios e escravos.

Desde essa época, a opressão provocou reações que se estabeleceram como poderes paralelos, como os quilombos, a Revolta de Canudos, o cangaço e a Revolta Farroupilha, no Sul. A exclusão da cultura oficial fez proliferar entre o povo um rico caldo de cultura, manifesto em expressões da língua, dos contos orais, das lendas e até da gastronomia.

João Felício dos Santos (1911-1989) foi um escritor que alimentou sua verve com a pesquisa sobre o discurso do oprimido. Ele é considerado precursor do romance histórico no País e assinou livros que viraram filmes famosos, como ‘Carlota Joaquina’, título de 1968 que foi para o cinema sob direção de Carla Camurati em 1995, Gamga Zumba (1964) e Xica da Silva (1976). Esses dois últimos foram dirigidos por Cacá Diegues, para quem João Felício escreveu de modo a criar uma espécie de “língua brasileira”.

Um livro de João Felício que condensa esse caráter de invenção da língua é ‘A Guerrilheira – O romance da vida de Anita Garibaldi’, lançado originalmente em 1979 e com segunda edição agora pela Editora José Olympio, que reedita a obra completa do escritor por ocasião do centenário de seu nascimento, em março de 2011.

O texto narra a trajetória de Ana Maria de Jesus Ribeiro, a Anita, ao lado do revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi, que foi um dos líderes da Revolta Farroupilha, movimento que inicialmente aglutinou descontentamentos dos estancieiros produtores de charque da Província São Pedro do Rio Grande do Sul e emergiu com ideais republicanos, contra a escravidão e demais políticas do Império. A revolta Farroupilha foi das mais longas: de 1835 a 1845.

Ao percorrer as páginas da história de amor entre Giuseppe e Anita, o leitor se depara com palavras e expressões que pertenciam ao universo da cultura daquela região na época, mas muitas vezes captando o sentido pelo contexto. “Não te acoquines amigo”, diz o estancieiro farroupilha ao companheiro, usando um termo genuíno no Sul, que significava “não se acovardar”.

A linguagem transporta o leitor no tempo e no espaço, dá uma dimensão do que teria sido aquela realidade, ainda que o escritor coloque sobre a pesquisa histórica elementos de sua imaginação para construir o romance, aspecto que chegou a colocar João Felício em conflito com o meio acadêmico, que não admitia a aproximação entre história e ficção.

A Guerrilheira – O romance da vida de Anita Garibaldi,

João Felício dos Santos, editora José Olympio, RJ, 2011, 384 págs., R$ 43.

Foto: Paulo Scheuenstuhl

Enigmas do amor e da morte nos contos de Julio Cortázar

O escritor era mestre na arte do conto

Qual a relação entre ‘amor’ e ‘morte’? Quando a conversa é sobre um desses termos, ou ambos, parece que falta alguma coisa para preencher o sentido das palavras. No amor, são tantas as possibilidades de significações que nos momentos de crise o sujeito se vê diante do abismo do nada. Na morte, o sentido nunca poderá ser apreendido, a não ser pela certeza de que chegaremos ao seu destino.

Essa conversa enigmática é o combustível de ‘Todos os fogos o fogo’, do mestre argentino Julio Cortázar (1914-1984), que agora chega a uma nova edição de bolso e fica mais acessível ao leitor. O livro reúne oito contos, cada um deles uma pequena obra de arte. O lançamento original é de 1966. Cortázar é um dos grandes nomes da literatura moderna, autor de ‘O jogo de amarelinha’ e ‘Histórias de cronópios e de famas’.

O conto que dá título ao livro faz uma fusão de duas histórias sobre paixões amorosas, uma no tempo presente e outra no período do império romano. Em ambas, estão em questão triângulos amorosos, sem que o escritor estabeleça limites entre a realidade e o imaginário dos sentimentos envolvidos. Cortázar evoca o passado dos gladiadores, leva o leitor para uma arena de combate, onde as personagens enfrentam os desígnios do amor e a da morte, como na história do presente.

Para ler esse livro é preciso estar longe de querer dominar o sentido das coisas e explicar tudo. Os contos começam naturalmente enigmáticos, causam estranhamento e aos poucos vão se abrindo à compreensão do leitor.

Na história inicial ‘A autoestrada do sul’ o leitor se vê em meio a um monstruoso congestionamento nos arredores de Paris, que começa em um domingo à tarde e se arrasta por toda a semana. É como se Cortázar pegasse um detalhe da vida cotidiana e o amplificasse ao extremo para ver o que acontece. No caso do congestionamento, as pessoas interagem solidariamente, o engenheiro protagonista se apaixonada pela moça de um ‘Dauphine’ até que aquela situação limite se mostra palco de um gozo perdido, como tantos que marcam a nossa memória.

A forma do texto é essencial em Cortázar, e também por meio dela o leitor é levado a um estranhamento inicial. No conto ‘ Senhorita Cora’, que trata de uma paixão entre um jovem doente e sua enfermeira, o papel do narrador desliza entre as personagens, ora é a mãe quem conta a história, ora é o garoto, ora a enfermeira. Cortázar mostra os mesmos fatos na perspectiva de diferentes personagens e assim implode a linearidade da história, que volta no tempo quando um personagem reconta algo já contado.

Vale também destacar os contos ‘A saúde dos doentes’ e ‘Reunião’. No primeiro, o escritor explora a dificuldade que a cultura ocidental tem em lidar com o tema da morte, e desenvolve uma comédia trágica em que a mãe doente é poupada de toda a má notícia. No outro, o escritor retrata a chegada dos revolucionários a Cuba, colocando Ernesto Guevara, o Che, como narrador.

Todos os fogos o fogo,

Julio Cortázar, tradução de Gloria Rodrigues, Edições BestBolso, RJ, 2011, 160 págs., R$ 12,90.

Foto: Divulgação

Ouça trecho do conto ‘Reunião’, em que o narrador é Ernesto Che Guevara recriado por Cortázar.

 

Truman Capote enriquece a aventura do jornalismo literário

Capote: retrato das contradições da cultura

As produções de arte muitas vezes são ‘sintomas’ ou ‘reflexos’ das atrocidades do mundo, dos conflitos de interesses, ou mesmo de culturas. Nessa perspectiva, um gênero que surgiu a reboque da Segunda Guerra Mundial foi o ‘jornalismo literário’, ou ‘The new journalism’, como ficou conhecido nos Estados Unidos, cuja obra inaugural é ‘Hiroshima’, de John Hersey, publicada em 1946.

O gênero faz uma fusão entre a narrativa de ficção e a reportagem. O resultado é uma investigação da realidade por intermédio da observação subjetiva do autor e da técnica do narrador na literatura. Suas produções são tidas como literatura não-ficcional, ou jornalismo em profundidade.

Vários jornalistas-escritores militaram no gênero, sendo o norte-americano Gay Talese um dos mais famosos. O fôlego das histórias e a demanda por tempo para apuração dos fatos, no entanto, sucumbiram aos interesses dos meios de comunicação, que precisam girar rapidamente seus conteúdos para manter audiência. Na ‘indústria’ da comunicação, o jornalista é um profissional que tem pouco tempo para apurar suas histórias. O jornalismo literário ficou assim restrito ao mundo dos livros.

Um dos pioneiros nessa arte e que tem agora uma coleção de 42 textos reunidos em ordem cronológica, sob o título ‘Ensaios’, é o escritor e jornalista norte-americano Truman Capote (1924-1984), que ficou famoso com a história de ‘A sangue frio’ – um crime brutal de uma família no estado do Kansas. Capote levou seis anos investigando a história para descrever com precisão o que ocorreu e os personagens envolvidos.

A criação desse livro é retratada no filme ‘Capote’, de 2005, com o ator Philip Seymour Hoffman. Mas a história já havia virado filme antes, em 1967, com o diretor Richard Brooks. No novo livro, um texto desse mesmo ano, sob o título ‘Fantasmas ao sol: a filmagem de A sangue frio’ traz um pouco dos bastidores do filme e reflexões do autor sobre a apuração do livro.

Mas um dos grandes momentos de ‘Ensaios’ é o texto ‘Ouvindo as musas’, de 1956, uma novela não-ficcional sobre a viagem de uma companhia de teatro com 94 membros a Leningrado e Moscou, na então União Soviética, para a apresentação da ópera Porgy and Bess, composta por George Gershwin. A peça trata da vida de uma comunidade de negros em uma cidade fictícia dos Estados Unidos, é polêmica e chegou a ser acusada de racista.

Mas para Capote o que está em questão é a viagem do outro lado da cortina de ferro e o choque cultural que põe a nu os valores e contradições dos seus conterrâneos. Vale também o caráter da narrativa do autor que reconhece no mundo soviético uma riqueza de valores e de manifestações culturais.

Confira este trecho da história que relata o momento em que a companhia chega ao hotel em Leningrado:

“Qualquer que fosse a razão, vários papéis principais e personalidades de destaque que viajavam a convite da companhia consideraram ‘grotesco’, ‘absurdo’ que ajudantes de palco e camareiras, marceneiros e eletricistas fossem conduzidos imediatamente aos apartamentos VIP, enquanto eles, ‘os que realmente importavam’, deviam se contentar com as sobras mais modestas do hotel”.

Ensaios, Truman Capote, tradução de Débora Isidoro, editora LeYa Brasil, São Paulo, 2010, 608 págs.