Quando a água acabar

Seca – Represa Jaguari, uma das que abastece o Cantareira (Foto: Fernanda Carvalho/Fotos Públicas)
Seca – Represa Jaguari, uma das que abastece o Cantareira (Foto: Fernanda Carvalho/Fotos Públicas)

‘Quando a água acabar’ pode ser mera força de expressão. Há lugares na cidade em que a água já acabou e quem me contou isso não foi o superintendente das águas de algum lugar, mas uma moradora do bairro dos Pimentas, em Guarulhos. Para ela, que todos os dias vai a São Paulo trabalhar, onde sempre vê as torneiras operantes, o gestor das águas e o governo tomaram a decisão clara de jogar o peso da crise hídrica sobre os mais pobres. Mais uma vez, São Paulo cumpre o legado histórico da política conservadora, e governa para os mais favorecidos, protegendo os bairros centrais do racionamento.

Oficialmente, Guarulhos cumpre um racionamento de um dia com água e outro sem desde o início da crise do Cantareira. Mas para essa mulher lutadora que mora no Pimentas, terminou o supletivo há pouco tempo e sonha em estudar na Universidade Federal em Guarulhos, que está sendo construída no seu bairro, o racionamento um por um seria de longe melhor do que a situação que vem enfrentando.

“Não tem racionamento, a água chega de forma completamente irregular, às vezes não tem pressão para chegar à caixa”, afirma, ressaltando que chega a ficar três dias sem água. Ela conta que os baldes estão cada vez mais se espalhando pela casa. E que o “socorro” um dia foi prestado por um carro-pipa que a prefeitura mandou, mas saiu briga na disputa pela água, o motorista até passou mal, e nunca mais o carro-pipa voltou. Também conta que a conta de água subiu, de R$ 20, em média, para R$ 36.

Mas o conto do vigário na crise hídrica de São Paulo é essa história de que São Pedro é quem vai salvar. Fosse um tempo de chuvas normais, ainda assim o Sistema Cantareira, que supre perto de 50% da cidade e outras regiões, estaria abaixo dos níveis de segurança. O consumo aumentou com o crescimento da população e de outras demandas, como a industrial. O fato é que o governo não fez os investimentos necessários para a expansão do abastecimento, e agora tenta soluções emergenciais, que neste ano não serão concluídas.

Nos últimos dias, especialistas em meio ambiente apareceram na imprensa para prever os desdobramentos do colapso do Cantareira e Alto Tietê, as duas reservas que podem secar primeiro. É até tecnicamente discutível se o colapso já não começou. Há quem defenda que sim, e para outros, como a moradora do Pimentas, o colapso se impôs na prática.

Mas também os últimos dias trouxeram à tona a crise de energia elétrica e, ironicamente, no escuro, em meio aos apagões, começou a ficar claro para os brasileiros que o País atravessa uma crise hídrica sem precedentes. 2015 provavelmente será menor do que sonhamos na noite de Ano Novo – haverá um impacto social e econômico que é difícil prever, mas que provavelmente vai se traduzir em menor crescimento.

Projeto em vão

Manifestação no vão livre do Masp: abraço simbólico ao museu (foto:  Abilio Guerra)
Manifestação no vão livre do Masp: abraço simbólico ao museu (foto: Abilio Guerra)

Em sã consciência, ninguém discorda que é preciso humanizar a cidade de São Paulo. Mas, na prática, na hora de realizar projetos e propor soluções as coisas não são bem assim. Um exemplo disso ficou patente com a polêmica que rolou na cidade nas últimas semanas sobre o fechamento com grades do vão livre do Masp, na avenida Paulista.

Uma ação articulada entre o jornal ‘O Estado de S.Paulo’ e o curador do museu, José Roberto Teixeira Coelho, resultou na publicação de um editorial em 20 de novembro que defendia a proposta de fechamento, como forma de evitar que “dependentes de drogas e traficantes” frequentassem a área.

Quem leu o editorial e conhece um pouco da história do museu e de sua inserção na cidade ficou indignado. Mas, ainda bem que o pretenso projeto de cercar o vão livre foi em vão. Estive na semana passada nesse espaço público, conversei com as pessoas e não encontrei ninguém que gostasse da ideia. Mais do que isso: no sábado, 7 de dezembro, cerca de 250 pessoas fizeram uma manifestação no local, dando um abraço simbólico no museu para deixar claro que o espaço pertence à cidade e seu acesso deve permancer livre.

As autoridades encontram mil razões para cercar lugares públicos e dificultar o acesso a bens, em nome do combate ao vandalismo, pela preservação do patrimônio e assim por diante. Mas dificilmente uma cerca vai humanizar algum espaço; pelo contrário, cercar, restringir, limitar é o mesmo que desumanizar.

Ao fechar uma área pública, tomamos uma medida opressiva, ou seja, suprimimos o desejo daqueles que querem ter acesso ao espaço. É como deixar o problema do lado de fora, lavar as mãos e fingir que dentro do “cercadinho” a vida é maravilhosa. Ao perder energia com esse tipo de discussão, a cidade e seus habitantes deixam de tratar do que realmente interessa, que é a discussão sobre como mudar a sociedade, o País e até mesmo a nossa cabeça para que os espaços públicos sejam menos excludentes e para que os excluídos sejam acolhidos e tenham restituído seu direito à cidadania.

No vão livre, tive o prazer de conhecer Azambuja Calado, 65 anos, professor de iluminação cênica, que achou um porre esse debate. A grande questão para ele é a sociedade discutir o acolhimento das pessoas que moram nas ruas. “Todo mundo tem direito à moradia”, afirmou, reconhecendo que essa é a verdadeira luta para que a sociedade consiga avançar em direção a um futuro melhor. Sobre isso, só tenho a concordar.

Nascimento da poesia moderna

‘Cabeça de Cristo’, de Victor Brecheret, pertenceu a Mário de Andrade
‘Cabeça de Cristo’, de Victor Brecheret, pertenceu a Mário de Andrade

Os registros de memória em São Paulo são frágeis e se perdem ou mudam de uma geração para outra. A cultura predominante na cidade, desde seus tempos mais remotos, até hoje se mantém: construir, destruir e reconstruir, num ciclo incansável que apaga a história e nos deixa surpresos diante da novidade.

Esse é um traço da cidade para o bem e para o mal. Se de um ponto de vista o espírito cosmopolita se renova, de outro a constante mudança provoca angústia, oprime os mais desfavorecidos, tantas vezes expulsos de suas humildes moradias, e desafia poetas e artistas.

Esse foi o aspecto que me chamou a atenção ao percorrer o texto e as fotografias antigas da cidade no livro ilustrado do escritor e professor de literatura Aleilton Fonseca, ‘O Arlequim da Pauliceia: imagens de São Paulo na poesia de Mário de Andrade’, que com um texto objetivo e despretensioso parte de um passeio em aspectos históricos, econômicos e sociais da cidade no século 20 para mergulhar na poética urbana do escritor paulistano, que foi um dos precursores do movimento modernista no País.

A prosa de Fonseca se debruça sobre dois títulos emblemáticos da influência da cidade na obra de Mário de Andrade: ‘Pauliceia desvairada’ e ‘Lira Paulistana’. Esses livros são extremos da produção do poeta e escritor.

O primeiro título foi escrito no começo dos anos 20 e apresentado na Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal. ‘Pauliceia desvairada’ é obra inaugural da poesia urbana moderna, livre da métrica e das tradições que já não expressavam mais a transformação do País, que no plano político se preparava para derrubar a República Velha com a Revolução de 30. Já o outro título é de 1945, portanto, da fase de maturidade do escritor, publicado no ano de sua morte.

Fonseca destaca que as duas obras representam dois estilos que convivem no poeta: “São balizas que marcam os pontos extremos de uma trajetória que vai gradativamente do desvario, predominante no primeiro livro, à observação metódica mais rigorosa, predominante no segundo”.

O livro também aborda episódios da vida familiar de Mário de Andrade e do “preço” que ele tinha de pagar por ser da vanguarda artística, como foi o caso da desaprovação que ele recebeu da família ao adquirir a escultura ‘Cabeça de Cristo’, de Victor Brecheret.

O texto é referenciado em notas, valendo-se de um conhecimento que torna a leitura ainda mais interessante. Numa dessas notas, Fonseca cita o historiador Nicolau Sevcenko, que no livro ‘Orfeu extático na metrópole’ (Companhia das Letras) considera o surgimento da cidade como “subproduto imprevisto e até inoportuno” da monocultura do café, cujo preço no mercado internacional enfrentava quedas crônicas naquela época, lançando crises que culminam com a dispensa da mão de obra de imigrantes, que buscam na capital uma alternativa de sobrevivência.

 

Aleilton Fonseca - O Arlequim da Pauliceia - capaO Arlequim da Pauliceia: imagens de São Paulo na poesia de Mário de Andrade,

Aleilton Fonseca, Geração Editorial, SP, 2012, 296 págs.

Mosaico de Ruffato revela um dia da vida cruel em São Paulo

Ruffato: narrativa realista e fragmentada, com personagens anônimos

A vida na cidade de São Paulo, imersa no cotidiano de trabalho, no vai-e-vem dos ônibus e do metrô, passa quase sem registro na história. Dia após dia, são poucos os significados e fatos que riscam a experiência do sujeito, tirando-o da permanente dedicação à urgência de suas tarefas.

Essa incapacidade de perceber a dimensão da vida na cidade e de se descolar da realidade premente é a matéria-prima do romance ‘eles eram muitos cavalos’, obra consagrada do escritor Luiz Ruffato, publicada originalmente em 2001. O título é inspirado em um poema de Cecília Meireles, que faz referência à falta de conhecimento sobre a origem de cada um no seio da multidão.

Ruffato compôs o que é considerado um romance fragmentário – uma reunião de muitas histórias e personagens da cidade, marcados pela banalidade, pela falta de sentido ou pelos sentimentos mais primitivos, como o egoísmo. Como se fosse um mosaico ou uma colcha de retalhos, o livro registra um único dia, uma terça-feira, 9 de maio de 2000, uma jornada em meio ao outono, regida pelo signo de Touro e protegida por Santa Catarina de Bolonha.

Sempre consciente da importância da forma no texto, e de sua força expressiva, Ruffato monta um quadro realista, com falas coloquiais, em que testemunha a multiplicidade dos personagens na cidade. Prostitutas, favelados, moradores de rua, professores, vendedores, crentes, bacanas da classe média, todos os corpos anônimos estão representados nas linhas do escritor, que os vê no ato intempestivo, na ação impensada e cruel, escrevendo com a mesma urgência com que vencemos um dia de trabalho.

Assim é, por exemplo, com a história da garota de São Miguel Paulista, vendedora de uma loja de roupas, assaltada enquanto devora um cachorro quente e pensa em fazer regime. Ou com o cão cujo dono, um morador de rua, é vítima de mais uma chacina na cidade, ou ainda com o médico que atende em um plantão noturno um assaltante baleado que, tempos antes, invadiu sua casa e ameaçou sua família.

Revolta no espaço público

Neste texto, intitulado ‘Natureza morta’, Ruffato traz o problema da violação do espaço das escolas públicas:

“No corredor, onde desaguavam as três salas-de-aula, gizes esmigalhados, rastros de cola colorida, massinhas-de-modelar esmagadas, folhas de papel-sulfite estragadas, uma lousa no chão vomitada, trabalhinhos rasgados, pincéis embebidos em fezes que riscaram abstrações nas paredes brancas, pichações ininteligíveis, uma garrafa de coca-cola cheia de mijo, um cachimbo improvisado de crack – a capa de uma caneta bic espetada lateralmente num frasco de Yakult. Ao fundo, a fechadura arrombada, cacos do vidro do basculhante, do barro do filtro d’água, marcas de chutes nas laterais do fogão, panelas e talheres amassados.”

eles eram muitos cavalos,

Luiz Ruffato, editora Best Bolso, RJ, 154 págs.