O sucesso da literatura erótica, com o fenômeno de vendas da escritora E. L. James, de “50 tons de cinza” e outros agregados, mostra que uma marca dos dias de hoje é a mulher assumir a posição de quem faz o discurso da sexualidade. Enquanto isso, os homens brigam pelo direito de usar saia, como aconteceu em um protesto de alunos de Letras da USP, e também no Colégio Bandeirantes, há poucos dias, com cerca de 50 alunos vestindo a peça feminina em apoio a três colegas censurados pela diretoria por usarem saias.
Como “sinal” do tempo, de repente um grupo social passa a clamar por outra forma de ver uma questão. Esse é o caso da escritora e suas leitoras ao se defrontarem com uma faceta do machismo, que é a predominância do discurso masculino no tocante ao sexo, e do protesto da saia, um objeto puramente convencional que pode ser “reinterpretado” para ocupar “outro lugar” na cultura, como pretendem seus adeptos.
Na maior parte da produção erótica, a literatura e o discurso da sexualidade têm uma relação direta com a vivência do presente. A produção literária é praticamente um radar que capta as tendências da sociedade. Mas, se a questão é considerar obras de cunho transcendental em erotismo, a leitura necessariamente começa com o livro “Kama Sutra”, de Vatsyayana, filósofo da Índia que escreveu esse texto no século IV.
Ao contrário do que muitos pensam, o “Kama Sutra” não é um manual de práticas sexuais, mas um tratado sobre o amor, o que é completamente diferente. A palavra “tratado”significa que o texto não resulta puramente da imaginação, mas nasce de um estudo, de uma análise sobre um fenônemo, que no caso é o exercício do sexo. A transcendência do texto está em inscrever entre os símbolos da cultura as características e categorias da prática do amor.
O livro é a maior referência do tema na literatura em sânscrito. Isso é feito na perspectiva da cultura na Índia, o que coloca o sexo (chamado “Kama”) como um dos três princípios que regem a vida, ao lado de “Darma”, em referência às leis, e “Artha”, a prosperidade. É, portanto, um cenário bastante diferente da banalidade carnal que conduz o sexo hoje.
Tive o privilégio de ganhar de presente de um amigo uma edição em português traduzida diretamente do sânscrito. No mundo, essas traduções são recentes e ampliam o nosso alcance sobre a obra rica em significações – desde o século 19, o que se tinha era uma tradução em inglês que era base de todas as outras, reproduzindo erros e desvios.
Kama Sutra,
Vatsyayana, com ilustrações de Alfredo Benavídez Bedoya, tradução de Daniel Moreira Miranda e Juliana Di Fiori Pondian, editora Tordesilhas, SP, 2011, 96 págs.