Tratado sobre o amor

Arte - Desenho de Alfredo Benavídez Bedoya, que ilustra a edição da Tordesilhas
Arte – Desenho de Alfredo Benavídez Bedoya, que ilustra a edição da Tordesilhas (Imagem: Reprodução)

O sucesso da literatura erótica, com o fenômeno de vendas da escritora E. L. James, de “50 tons de cinza” e outros agregados, mostra que uma marca dos dias de hoje é a mulher assumir a posição de quem faz o discurso da sexualidade. Enquanto isso, os homens brigam pelo direito de usar saia, como aconteceu em um protesto de alunos de Letras da USP, e também no Colégio Bandeirantes, há poucos dias, com cerca de 50 alunos vestindo a peça feminina em apoio a três colegas censurados pela diretoria por usarem saias.

Como “sinal” do tempo, de repente um grupo social passa a clamar por outra forma de ver uma questão. Esse é o caso da escritora e suas leitoras ao se defrontarem com uma faceta do machismo, que é a predominância do discurso masculino no tocante ao sexo, e do protesto da saia, um objeto puramente convencional que pode ser “reinterpretado” para ocupar “outro lugar” na cultura, como pretendem seus adeptos.

Na maior parte da produção erótica, a literatura e o discurso da sexualidade têm uma relação direta com a vivência do presente. A produção literária é praticamente um radar que capta as tendências da sociedade. Mas, se a questão é considerar obras de cunho transcendental em erotismo, a leitura necessariamente começa com o livro “Kama Sutra”, de Vatsyayana, filósofo da Índia que escreveu esse texto no século IV.

Ao contrário do que muitos pensam, o “Kama Sutra” não é um manual de práticas sexuais, mas um tratado sobre o amor, o que é completamente diferente. A palavra “tratado”significa que o texto não resulta puramente da imaginação, mas nasce de um estudo, de uma análise sobre um fenônemo, que no caso é o exercício do sexo. A transcendência do texto está em inscrever entre os símbolos da cultura as características e categorias da prática do amor.

O livro é a maior referência do tema na literatura em sânscrito. Isso é feito na perspectiva da cultura na Índia, o que coloca o sexo (chamado “Kama”) como um dos três princípios que regem a vida, ao lado de “Darma”, em referência às leis, e “Artha”, a prosperidade. É, portanto, um cenário bastante diferente da banalidade carnal que conduz o sexo hoje.

Tive o privilégio de ganhar de presente de um amigo uma edição em português traduzida diretamente do sânscrito. No mundo, essas traduções são recentes e ampliam o nosso alcance sobre a obra rica em significações – desde o século 19, o que se tinha era uma tradução em inglês que era base de todas as outras, reproduzindo erros e desvios.

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Vatsyayana, com ilustrações de Alfredo Benavídez Bedoya, tradução de Daniel Moreira Miranda e Juliana Di Fiori Pondian, editora Tordesilhas, SP, 2011, 96 págs.

 

Confusão entre palavra e palavrão paira no ar

O leitor ligou para a redação do jornal e falou com o editor-chefe. Disse que não estava certo usar a palavra “genitália” no artigo sobre o romance da escritora Hilda Hilst (1930 – 2004), afinal, era preciso respeitar o público.

Naomi teve seu livro censurado pela Apple

Mas o fato é que a tal palavra faz referência àquele conjunto de órgãos que permitem que a vida se exprima em sexualidade, e não chega a estar entre as de baixo calão. Digamos que o leitor pecou pelo exagero. “Aliás, tabu, tabu linguístico é genitália. A palavra apenas esconde outras que não se dizem em público”, escreveu Otto Lara Resende (1922-1992) em uma crônica na Folha de S.Paulo, em seu último ano de vida.

Algo semelhante a uma confusão entre palavra e palavrão também aconteceu em setembro, num caso que colocou o órgão feminino no centro da celeuma, quando a livraria virtual da Apple, a iTunes Store, censurou o livro da escritora norte-americana Naomi Wolf, ‘Vagina: uma nova biografia’.  Para que a referência ao título ficasse “de acordo” com seu pretenso padrão, o site grafou “v****a”, onde deveria escrever “vagina”.

O excesso de cuidado, que chega a redefinir o sentido das palavras, é uma manifestação de valores conservadores na sociedade em que vivemos hoje. Engraçado é que essas expressões surgem como algo que nos escapa, já que a ilusão geral é de que a sociedade permite que o indivíduo se exprima no mais amplo espectro de seus desejos.

A confusão com a linguagem é um sintoma dos nossos dias, e talvez resulte do imenso abismo entre os atos e a fala, algo que a pessoa muitas vezes não percebe. Até mesmo onde deveria haver clareza quanto às posições relativas de texto e contexto, o que quer dizer que uma palavra pode caber em uma situação e não em outra, predomina a confusão.

Isso foi o que aconteceu quando a Academia Brasileira de Letras (ABL) interrompeu a transmissão na internet de palestra do historiador Jorge Coli sobre arte, sexo e pornografia, quando ele se referiu a vagina com um termo chulo, enquanto exibia o quadro ‘A origem do mundo’, de 1866, do pintor francês Gustave Courbet, que traz em primeiro plano uma genitália feminina retratada com realismo.

Não se trata de negar a necessidade de interdições, ou proibições, para garantir o convívio social. O crime da pedofilia é exemplo de que as regras são necessárias. Mas para além das fronteiras das nossas raízes de valores, e até de preconceitos, as palavras alimentam a imaginação e as produções culturais, sejam elas simples termos ou palavrões.

As palavras que têm mais sinônimos, porque ganham asas no imaginário popular, são justamente aquelas que estão ligadas aos tabus. “Para nomear um certo algo masculino , por exemplo, há 126 sinônimos”, escreveu Resende em sua crônica, na qual ele também diz que encontrou mais de 200 vocábulos para o correspondente feminino. Deixar de lado o preconceito, portanto, talvez seja uma ideia para pensar com mais abrangência.

Foto: Divulgação

Virginia Woolf renasce nos 70 anos de sua morte

Hoje faz 70 anos que a escritora Virginia Woolf morreu. Naquele fatídico 28 de março de 1941, ela se viu atormentada pela iminência de mais uma crise nervosa, e assim preferiu encher os bolsos de suas roupas com pedras e se afogar no rio Ouse, em Sussex, interior da Inglaterra. Virginia deixou uma carta ao marido: “Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer”.

Escritora representou o modernismo na Inglaterra

A morte trágica jogou um véu sobre a obra literária. A escritora se transformou em uma personagem mais famosa que os livros. Contribuiu para isso também a bissexualidade assumida, que fez crescer as lendas em torno de seu nome. O jornal inglês ‘The Independent’ publicou uma matéria no início deste mês sobre o lançamento de novas edições dos títulos ‘Entre os atos’ e ‘As ondas’, pela Universidade de Cambridge, e afirmou que Virginia está ressurgindo “como uma escritora que tinha astúcia política, consciência histórica, educação e talento, mais do que se imaginou até então”.

A escritora é um dos exemplos do que foi o modernismo na literatura inglesa do começo do século 20. Ela pertenceu ao grupo de escritores e intelectuais que ficou conhecido como Círculo de Bloomsbury, em referência à localidade perto de Londres em que eles se encontravam. Havia uma identidade sobre política, economia e literatura no grupo nos anos 20 – o economista John Maynard Keynes era um de seus participantes.

O mais famoso livro de Virginia Woolf é ‘Orlando, uma biografia’, publicado originalmente em 1928. O romance narra a trajetória, desde 1500, de um rapaz bonito e atraente, que pertencia à corte inglesa e vive mais de 300 anos. A certa altura, no entanto, servindo seu reino como embaixador na Turquia, Orlando tem um profundo sono durante dias e depois desperta como uma mulher.

Virginia dedica a obra à amiga e amante Victoria Sackville-West, que por ser mulher havia sido impedida de herdar um castelo que pertencera por séculos à sua família. Inspirada em fatos e pessoas reais, Virginia constrói assim uma crítica da sociedade inglesa, com manifestações de ironia e irreverência. O movimento feminista abraçou ‘Orlando’ como uma obra em favor da igualdade dos sexos e até como alegoria da superioridade da mulher.

Mas o livro é mais do que isso. Não apenas funde os gêneros de narrativa do romance, da biografia e do relato histórico, como revela uma aguda sensibilidade para colocar em questão a identidade humana. Na voz de Virginia Woolf guardada no livro, o ser humano é alguém que é homem e mulher ao mesmo tempo, uma perspectiva que pode dar muito a pensar.

Orlando, uma biografia,

Virginia Woolf, tradução de Cecília Meireles, editora Nova Fronteira, 198 págs.

Onde encontrar – www.estantevirtual.com.br