Borges entre os enigmas da linguagem

Borges especula sobre misticismo e poesia

Participar de uma religião é um exercício no qual os fiéis estão sempre construindo significações e símbolos para o Ser Divino. Não importa qual a religião, esse exercício se repete, a tal ponto que ‘ser religioso’ não é tão simples quanto ‘ter religião’. E mesmo que o sujeito se diga ateu, nos momentos de pavor ou medo sua mente envereda pelo caminho da superstição, levando a crer que interpretar o mundo de forma mágica é um ato extremamente humano.

Ao procurar compreender o que é o Divino, o ser humano busca uma transformação que o afaste das coisas pequenas. Ao ler o conto fantástico ‘O Aleph’, de Jorge Luis Borges (1899-1986), originalmente publicado em 1947, encontramos esse mesmo movimento, na figura de algo que tem existência material e espiritual, que o escritor define como “um ponto do espaço que contém todos os pontos”.

Essa ideia de pluralidade se repete nas definições que Borges encontra para ‘O Aleph’ – ele é também um pássaro que é todos os pássaros, uma esfera “cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma”.  Literalmente, Aleph é a primeira letra do alfabeto hebraico, e se refere também ao primeiro elemento de uma série ao infinito.

No conto, Borges é assolado por súbito mal-estar, trazido pelo pensamento de que estava prestes a morrer, antes de ter a evidência do universo inconcebível. Ele admite que essa experiência é semelhante ao transe dos rituais místicos, em que se procura construir sentidos para a divindade a partir da visão da morte – esse é, por exemplo, o ritual seguido pelos grupos de bebedores de ayahuasca, chá feito com plantas amazônicas e usado desde os incas. Os símbolos para a divindade seguem a ideia de que cada homem tem um ponto de vista do mundo, mas só Deus abarca todos os pontos de vista.

Borges era apreciador da Cabala, lia tudo a respeito desse conhecimento fundamental do judaísmo. No conto, ele não está propriamente interessado na religião, mas no fenômeno de linguagem. Em 1966, em entrevista à revista ‘The Paris Review’, ele falou porque se interessou pela Cabala: “Penso que foi por intermédio de De Quincey [Thomas De Quincey – 1785-1859], através de sua ideia de que todo o universo era um conjunto de símbolos, ou de que qualquer coisa significava alguma outra coisa”.

‘O Aleph’ traz também referências à Divina Comédia, do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), que indica o interesse de Borges pelos fenômenos da linguagem.  Dante é representado pelo personagem Carlos Argentino Daneri, um poeta a princípio louco e enfadonho, para o qual Borges não vê futuro. Mas, no conto, é Daneri quem o conduz à experiência mística.

O livro ‘O Aleph’ traz outros contos do autor, a maior parte deles identificados com o gênero das histórias fantásticas. Um deles é também referência famosa de Borges. ‘A Casa de Astérion’ reconta o mito grego do minotauro, homem com cabeça de touro, que habitava o centro de um labirinto e matava quem ali entrasse.

O Aleph,

Jorge Luis Borges, tradução de Davi Arrigucci Junior, Companhia das Letras, SP, 2008, 160 págs.

Foto: Divulgação

Ouça arquivo MP3 com o conto ‘Os dois reis e os dois labirintos’.