À procura de carne de rã

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Por Marina Moura

A princípio pensei que fosse banda punk ou coletivo feminista. Andando pelas ruas do Rio, o olhar que não consegue ficar sem catar letras nas paredes para decifrar, eis que vejo pelo menos pela 36ª vez o tal do anúncio de “carne de rã”, seguido de um número de telefone.

Embora pudesse me esconder atrás de prerrogativas jornalísticas, registrando informações “isentamente”, “narrando apenas pelo registro”, achei perigoso falar, de cara, sobre algo cuja origem desconhecia. Em tempos de cólera, melhor se precaver.

Afinal, a rendição. Perguntei pro Google o que poderiam ser aqueles atípicos anúncios de carne de rã. Deparei-me com curiosa matéria a respeito. Embora não esclarecesse definitivamente a origem do anúncio, a jornalista relata sua busca de três dias pela matriz de toda coisa, quando ela finalmente conseguiu falar com uma mulher que dizia ser de um ranário do interior que vendia rãs a R$ 60 o quilo, com entrega na Lapa.

Apesar de não saber o local do ranário, o que levanta suspeitas sobre sua existência, a mulher assumiu à jornalista que as vendas aumentaram substancialmente depois do surgimento dos anúncios de carne de rã pelas ruas do Rio.

Inconclusas conclusões

– Continuo achando que o Carne de Rã possa ser coletivo feminista ou serviço delivery de substâncias ilícitas – irônica, ousada e deslavada forma de anunciar venda de tóxicos nos muros, calçamentos e tetos nas proximidades das instituições governamentais da rua Primeiro de Março;

– A carne da rã está cara. Para quem acredita que a de frango é igual à da rã, sugiro continuar com a de frango, quem sabe até com os pés. Dizem que são nutritivos;

– Se quem produziu os anúncios de fato é criador e vendedor de carne de rã, a empresa devia estar no topo do ranking das melhores ações de marketing do ano;

– A matéria da jornalista, alertou uma amiga, é de 2014. Mas o anúncio é tão bom, literalmente “chiclete”, que perdura até este 2018, justificando meu olhar para as demais rãs da cidade e as observações que moveram esta croniqueta.

O fim da conciliação de classes na República das Bananas

1. Haverá uma diferença nas eleições deste ano no Brasil. Uma diferença consolidada do que já se apresentava em 2014 como esboço. Não há mais conciliação de classes no país. É o que deixou bem claro o julgamento do ex-presidente Lula no TRF-4 em 24 de Janeiro. Ou nas palavras do professor Vladimir Safatle sobre o julgamento: “seu destino é a expressão do colapso de todo horizonte de conciliação na política nacional, com seu preço a pagar em moedas de grandes empreiteiras” (Folha de S. Paulo – 26.jan.18).

2. A observação de mais impacto sobre o julgamento decorre da derrocada dessa conciliação. A classe dominante no Brasil cada vez mais se faz representar pelo Judiciário, sem se incomodar com o equilíbrio de poderes ou outros ‘mimimis’ do estado de direito. O julgamento transforma as garantias constitucionais em ficção. Mera ficção. A letra da conciliação, a Constituição de 1988, já se torna letra morta.

3. Lula não pode ir para a Etiópia participar de Conferência sobre a fome. Seu passaporte foi tomado pela justiça depois que a unanimidade contra ele foi expressa no julgamento do TRF-4. Literalmente, é Lula que não pode viajar. Mas do ponto de vista simbólico é o brasileiro que não pode se deslocar. Não pode se deslocar no campo das ideias. Não pode ter o pensamento livre. O estado de exceção permite somente o que legitima a exploração. É a tentativa de pôr fim à subjetividade. Somente o que legitima o senso comum tacanho tem vez. O orgulho de ser brasileiro está ferido.

4. A concessão de TV no Brasil desde a ditadura civil-militar de 1964 criou um monstro. É um monstro, uma aberração, que não precisa mais ser representado no poder, mas que agora representa a si mesmo. Basta responder qual país você deseja para o futuro para estar em sintonia com esse monstro. Se você acredita que o país deve estar a seu serviço (na verdade a serviço da classe dominante), que a meritocracia é o caminho para conquistar prosperidade, parabéns, você está em paz com o monstro e cego para o fato de que as oportunidades não são iguais neste país.

5. Mas se você acredita que a luta política é um esforço coletivo, cuidado. Você é comunista e como tal será odiado.

6. O ódio é a expressão deste momento ou deste tempo. Ele canaliza o desejo de matar o outro, de aniquilar as diferenças e devolver o mundo à ordem, uma ordem que se expressa no paradigma positivista da bandeira nacional. Ordem é a hegemonização do pensamento. Pensamento é aquilo que legitima a exploração. Tudo o mais não é admitido.

Donald Trump na era da pós-verdade: quando a versão é mais importante do que o fato

Flavio Aguiar – Rede Brasil Atualtrump-1938339_960_720

Corre uma discussão em diferentes mídias mundiais de que estaríamos vivendo, no jornalismo, nas redes sociais e de um modo geral, a “era da pós-verdade”. Normalmente, as pessoas usam o prefixo “pós” quando não sabem muito bem o que querem definir, mas sabem de onde partem para esta indefinição. O termo “pós-moderno” é o exemplo mais bem acabado disso.

Também deve-se considerar, previamente, que antes o termo “era” valia para um período muito extenso, coisa de milhões, milhares ou pelo menos uns dois séculos de duração. Hoje este prazo se abreviou consideravelmente, e fala-se descontraidamente em “era FHC”, “era Lula”, “era Dunga”, para ficar em alguns exemplos caseiros. Já há até quem fale em “era Temer”, enquanto outros anunciam, esperançosos, ou porque querem sucedê-lo, ou porque querem simplesmente vê-lo pelas costas, que “Temer já era”.

Mas o que se quer dizer – mesmo que sem exatidão – com “pós-verdade”?

De um modo geral, pode-se dizer que a expressão aponta para uma sensação controvertida de que estamos superando a consideração de que mais importante do que o fato é a versão. Estamos entrando num momento em que o fato perde sua substância completamente. A versão é o fato, e ela subsiste por ela mesma.

Apontam, por exemplo, que o turning point desta sucessão de momentos foi a guerra do Iraque que depôs Saddam Hussein. A mídia sustentou, sem provas nem mesmo tentativas de verificação, a ideia de que o ditador iraquiano albergava armas de destruição maciça e massiva. A justificativa sustentou a guerra. Depois se comprovou que era tudo mentira, que as tais armas não existiam, que fora tudo um engodo forjado pelo governo norte-americano e seus órgãos de inteligência e espionagem. Mas nesta altura Inês já era morta, ou melhor, Saddam Hussein já estava deposto e morto. Para muitos, isto foi e é um escândalo. Para outros tantos, isto não passa de faits-divers da guerra da informação; escandaloso é se recorrer a tais métodos.

Servem de amparo a ambos os lados da contenda as múltiplas afirmações atribuídas ao ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels, sobre a repetição da mentira até ela tornar-se verdade – afirmações estas que, diga-se de passagem, não dispõem de comprovação documental, pelo menos até o momento. Embora, é claro, que os defensores da desinformação como método de guerra jamais citarão o ministro de Hitler como argumento em seu favor.

A era da pós-verdade, seja lá o que isto queira dizer, ganhou um reforço com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, não resta dúvida. Além de reunir entre seus auxiliares diretos e indiretos o que os Estados Unidos têm de mais reacionário e agressivo, e de tomar algumas medidas de acordo com seu programa demolidor do bom senso e consagrador do que o senso comum tem de mais idiota, Trump vem fazendo um esforço enorme para impor-se como o hegemon da pauta política mundial. Este termo é usado em ciência política para designar um estado que se impõe sobre outros dominando-os não só econômica, militar e politicamente, mas também culturalmente, fazendo-se a referência de significado para  os que mantém sob seu guarda-chuva ou dentro do seu curral, como se quiser. A Roma Antiga, Espanha, Holanda,  França, Inglaterra, Estados Unidos são bons exemplos de hegemons de sucesso com duração e alcance variados em sua hegemonia. Trump ambiciona fazer a renovação dos Estados Unidos como hegemon, interna e externamente, e neste esforço quer ele mesmo tornar-se o hegemon do hegemon, o “meta-hegemon“: “L’Amérique c’est moi”, para juntar o modo arrogante como os norte-americanos se referem a si mesmos com a célebre frase sobre o Estado atribuída a Luis XIV (ao que parece também sem fonte direta).

Um bom exemplo desta ânsia em hegemonizar a pauta mundial é o anúncio bombástico de que os Estados Unidos vão sair da Parceria Transpacífica. Na verdade, esta “bomba” anuncia que os Estados Unidos sairão de algo em que ainda não entraram, porque ela ainda não existe de fato. Trump poderia dizer “desistir”, mas não ficaria bem, porque líderes como ele não “desistem” de nada; “sair” é mais bombástico, mais “macho”, para usar uma boa expressão adequada ao personagem e à personalidade em que quer se transformar.

Neste esforço titânico, Trump e seu entorno entraram em confronto com esta coisa inteiramente superada: o “fato”. Seu assessor de imprensa, Sean Spicer, acusou a mídia de falsear a imagem da posse do novo presidente como “vazia”, graças ao “pouco comparecimento”. Várias mídias reagiram, expondo fotos das ruas de Washington quase ao relento durante a posse de Trump (a não ser pelas manifestações contrárias), e as mesmas ruas tomadas por multidões feéricas durante a posse de Obama. Uma outra assessora de Trump veio em socorro de Spicer, dizendo que este se referia a “fatos alternativos”. Mas o melhor socorro mesmo veio do próprio Spicer, que no dia seguinte afirmou que às vezes é necessário ir contra os fatos, e que isto não significa mentir. Haverá melhor definição e práxis da “pós-verdade”?

Bem, Trump deu uma. Agora atribui sua derrota no voto popular para Hillary Clinton a um suposto comparecimento às urnas de algo entre 3 milhões e 5 milhões de “eleitores ilegais”. Diz que tem indícios, provas, mas não os apresenta. Fica assim o dito pelo dito, e é claro que haverá milhões de embasbacados pró-ativos acreditando na afirmação e repetindo-a até que para outros milhões ela vire uma verdade.

Como se costuma praticar em coletividades jurídicas que se põem alegremente sob o guarda-chuva – ou a canga – do hegemon norte-americano, sem provas, mas com muita convicção, mesmo que esta frase seja o amálgama de diferenças sentenças de diferentes personagens, mas unidos no esforço de, definido o criminoso para eles, encontrar a apresentar o crime que este cometeu – numa variante muito promissora para futuros romances policiais.

Portanto, resumindo para @s leitor@s, aperte o cinto. Você já está vivendo plenamente a “era da pós-verdade”, dentro e fora do seu país.

O ‘paradoxo da comunicação’ nas palavras do professor Perseu Abramo

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Cara, depois de toda a luta, do golpe e esse bando de coxinhas estúpidos que tomaram o poder de assalto, eis que encontro uma declaração do professor Perseu Abramo, de 1995, aos formandos de jornalismo da PUC-SP, portanto, pouco tempo antes de sua morte, que impressiona por sua atualidade. Digo mais, é praticamente uma profecia.

Olha o professor: “Se a sociedade não lutar, também, pela democratização da comunicação, o aumento do poder tecnológico nas mãos de uma elite dominante, sem participação do conjunto social, não vai significar mais democracia. Ao contrário, significará mais dominação, mais exploração, mais opressão, mais desigualdade, mais injustiça. Portanto, menos democracia. É o que chamo de Paradoxo da Comunicação”.

Análise brilhante. Quanto mais comunicação concentrada, menos democracia. É como se o professor soubesse no que ia dar a aventura da democracia nestes anos 2010, é como se ele estivesse aqui, ao nosso lado, lutando contra o golpe legalista, contra a manipulação da realidade pela mídia golpista, contra a onda conservadora que reage a umas poucas, pouquíssimas conquistas. Aliás, manipulação da realidade é o cerne do livro onde encontrei essa declaração do professor: Padrões de manipulação na grande imprensa (Fundação Perseu Abramo, 2ª edição, 2016).

No universo da mídia como empresa, como negócio, não há comunicação sem um arcabouço ideológico, um plano estratégico, uma linha editorial, um projeto de realidade que não tem necessariamente tudo a ver com o real. A própria distinção entre fatos jornalísticos e não jornalísticos já cria uma cisão entre o que o leitor, espectador, ouvinte vai ter acesso e o que não vai. No livro, o professor mostra as ferramentas de manipulação que servem a esse projeto de criar uma realidade com certos objetivos. A ocultação, a inversão, a fragmentação são conceitos que permitem manipular a informação para que a realidade possa ficar ao sabor do interesse da empresa editorial.

Achei fundamental um aspecto que o professor destaca que é a “inversão da opinião pela informação” – o veículo de comunicação passa opinião como se fosse informação, na perspectiva de obter uma aderência do leitor/espectador. O professor diz que nesse caso, o juízo de valor ocupa o lugar do juízo de realidade, como se a distinção entre ambos pudesse ser negada. Segundo Abramo, “o leitor/espectador já não tem mais diante de si a coisa tal como existe ou acontece, mas sim uma determinada valorização que o órgão quer que ele tenha de uma coisa que ele desconhece, porque o seu conhecimento lhe foi oculto, negado e escamoteado pelo órgão”.

É claro que não precisa navegar muito na internet para encontrar um exemplo do que o professor está falando. No Estadão, neste sábado (9): “Governo Temer investiga financiamento a porto em Cuba” – “hm”, penso como leitor, “então quer dizer que os governos Lula e Dilma teriam feito maracutaia no financiamento, hm”.

Meu, a publicação desse livro agora em segunda edição não poderia ser mais oportuna. Um momento de cisão profunda do país, momento em que se fala em desintegração social, e de imposição de um projeto que jamais seria aprovado pelas urnas. Tudo isso com adesão de parte expressiva da população, sem dúvida, que partilha de um senso comum midiático para criminalizar o pensamento e a atuação política de quem não comunga com as forças de mercado, com a meritocracia, com a entrega da soberania do pré-sal, com redução de programas sociais, com a prevalência do individualismo sobre a individualidade.

Cara, olha aí os coxinhas de camisa da seleção. Bebe logo essa cerveja e vambora antes que o clima esquente, abração, e tira essa camiseta vermelha, vê se usa algo mais neutro.

O fim da Guerra Fria

Fernando Morais – Acesso a documentos da Rede Vespa (foto: divulgação)
Fernando Morais – Acesso a documentos da Rede Vespa (foto: divulgação)

Na quinta-feira (18), um dia depois do histórico anúncio da retomada de relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos, os cubanos dividiam-se quanto às perspectivas do ato político anunciado por Raúl Castro e Barack Obama, mas eram unânimes em comemorar a volta para casa de seus três heróis nacionais. Gerardo Hernández, Ramón Labañino e Antonio Guerrero ganharam liberdade horas antes do anúncio oficial do acordo.

Enquanto isso, pelo lado cubano era libertado o norte-americano Alan Phillip Gross, preso em 2009, acusado de burlar a lei ao levar à ilha equipamentos de comunicação por satélite, que seriam usados por uma comunidade judaica em Havana para acesso à internet, e também por trabalhar como agente de espionagem para o governo norte-americano.

Os cubanos, por sua vez, tinham sido condenados pela justiça no país vizinho por terem se infiltrado na Flórida nos anos 90 para investigar a ação de 47 grupos anticastristas, de extrema direita, que operavam ataques terroristas em solo cubano. A trajetória dos espiões cubanos, que foi organizada pelo governo e se chamava Rede Vespa, pode ser conhecida no livro-reportagem ‘Os últimos soldados da Guerra Fria’, do jornalista e escritor Fernando Morais, que foi lançado em 2011.

Morais teve acesso a mais de 30 mil documentos produzidos pela Rede para a inteligência cubana e realizou 40 entrevistas. Um dos fatos curiosos nessa história é que enquanto o governo de Cuba abriu todas as informações e personagens para o escritor, nos EUA algumas entrevistas foram em ‘off’, porque a legislação proíbe os agentes da CIA de darem declarações públicas.

“Na prática, acaba sendo o fim do conflito como ele existiu durante toda a Guerra Fria. Conforme o título do livro do Fernando Morais são os últimos soldados da Guerra Fria esses cubanos que agora voltaram para o país e aquela Guerra Fria terminaria aí”, afirmou em entrevista, também na quinta-feira, o sociólogo Emir Sader, ao analisar o fato histórico que acabara de se desdobrar, concluindo que o embargo foi um tiro no pé para os Estados Unidos.

A expressão ‘o fim da Guerra Fria’ não é só recurso retórico mas o fim, de fato, de uma era que se instalou em 1961, após a revolução que levou Fidel Castro ao poder, e foi marcada por invasões do espaço aéreo cubano, ataques terroristas, lançamento de pragas em lavouras, entre outras ações resultantes de grupos conservadores.

Essa tentativa de acabar com a “ameaça comunista” é sustentada por uma arrogância típica de extremistas, como se fosse possível a um povo não escolher o seu destino “porque são os norte-americanos que detêm a liberdade”. A resistência aos Estados Unidos, em Cuba, com o embargo econômico se tornou mais que uma questão política, se tornou uma questão de honra e o desfecho dessa história mostra os cubanos como um povo que sabe defender sua identidade.

Tempo de despertar

Já fui muito festeiro, não sou mais. Se houvesse uma enquete para definir o mês mais chato do ano, cravaria sem pestanejar: dezembro. É um porre de bebida ordinária. É pior que cuecas e sapatos apertados.  Não chega a aleijar, mas incomoda.

Os preços disparam e raramente se encontra nas lojas o que se procura. O trânsito consegue ficar infinitamente pior do que já é. O telefone não para: de asilos a creches, todos querem uma doação extra. Os funcionários do prédio esperam uma “caixinha gorda”, os balconistas da padaria também. O ajudante do açougueiro, o carteiro e os medidores de água, luz e gás não fogem à regra. Esta gente não recebe o 13º salário?

Pior que isso, só o tal de “amigo oculto”. Perde-se muito tempo e dinheiro com essa bobagem. Em geral, você dá ao “amigo” o que ele abomina, e recebe algo que para nada lhe serve. É a lei da vida: aqui se faz e aqui se paga. Isso quando não ocorre de você dar um panetone para a tia e receber da tia um panetone, da mesma marca e tamanho. É patético.

Não sei o que é pior: as festas de Natal ou as comemorações do dia 31. Todo mundo de olho no relógio. Afinal, meia-noite é a hora de abraçar com entusiasmo aquele parente que você paga para não ver ao longo do ano. Aquela felicidade forçada é de arrebentar corações pouco valentes, como o meu.

Ah, temos os foguetórios, anunciando a chegada do novo ano. Todo mundo de boca aberta, olhando para o céu e dizendo em uníssono: “Que lindo!” Francamente. Que dizer, então, das simpatias? Calcinhas brancas para ter paz; amarelas para ter dinheiro. E por aí vai. Suponho que as devassas, por coerentes e pragmáticas, não usem calcinha alguma.

Ainda bem que não há mal que sempre dure. Janeiro logo chega. É tempo de pôr em marcha tudo aquilo que, há duas décadas, em marcha prometemos pôr. Em vão. Tempo de recomeçar a contar os dias que faltam para dezembro próximo.

 

Orlando Silveira orlandosilveira@uol.com.brorlando3

Blog: http://orlandosilveira1956.blogspot.com.br/

AP denuncia operação clandestina dos EUA em Havana

Los Aldeanos – influência de agência norte-americana sem ter consciência da operação (foto: Oriana Eliçabe)
Los Aldeanos – influência de agência norte-americana sem ter consciência da operação (foto: Oriana Eliçabe)

A agência de notícias Associated Press (AP) divulgou na quinta-feira (10) documentos que mostram que a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) se infiltrou durante dois anos (2009 e 2010) no movimento hip-hop em Havana para influir na carreira de rappers e fomentar um movimento contra o governo de Cuba.

A ação clandestina da agência consistiu em influenciar os jovens ideologicamente, procurando fomentar uma mobilização por mudanças sociais no país. Segundo os jornalistas da AP que fizeram a investigação, por pelo menos seis vezes as autoridades cubanas detiveram ou interrogaram pessoas ligadas ao programa, confiscaram computadores e encontraram informações que comprometiam cubanos, sem que eles soubessem estar participando de uma ação secreta dos norte-americanos.

Os documentos que a AP publicou na internet são e-mails, relatórios de trabalho, contratos, enfim, uma profusão de informações que detalha toda a ação da agência norte-americana na ilha. A ‘operação hip-hop’ teve como articulador o sérvio Rajko Bozic, que atuou no movimento estudantil na Iugoslávia, que no ano 2000 levou à renúncia do presidente Slobodan Milosevic.

A atuação de Bozic foi focada no grupo Los Aldeanos, que era bastante respeitado entre os jovens cubanos. Os documentos também mostram a participação da empresa norte-americana Creative Associates, que financiou um programa de televisão estrelado pelos Los Aldeanos. A Creative usou uma empresa de fachada no Panamá e um banco em Lichtenstein, um minúsculo principado na Europa, para dificultar o rastreamento do dinheiro.

O projeto, no entanto, se mostrou amador e não obteve sucesso. Em agosto de 2010, ao participar de um festival de música independente em Havana chamado Rotilla, os membros do grupo, Bian Rodriguez e Aldo Rodriguez, insultaram oficiais do governo e a polícia.  “A polícia, em vez de me fazer odiá-los, inspira pena, porque eles são como comedores de m…, eles nem mesmo compreendem que são vítimas do sistema. Viva Cuba livre”, afirmou Aldo para um público de 15 mil pessoas. Depois disso, os Los Aldeanos se mudaram para a Flórida.

O fracasso da operação é o que mais chama a atenção nessa história. Faz tempo que os Estados Unidos tentam dizimar, sem sucesso, a cultura cubana, que se fortaleceu com a revolução que levou Fidel Castro ao poder. Muito da força do povo tem a ver com a universalização da educação na ilha. “Foram criadas mais de dez mil salas de aulas apenas no primeiro ano após a derrubada de Fulgencio Batista. Uma das primeiras instruções baixadas por Fidel Castro como primeiro-ministro foi a transformação de 70 quarteis em escolas de alfabetização, depois readaptadas para o ensino médio”, afirma o escritor Fernando Morais no livro-reportagem ‘A Ilha’, publicado nos anos 1970.

Confira os documentos divulgados pela AP.

Inspiração no simbolismo

Matheus – Narrativas enriquecem a experiência do leitor (foto: arquivo pessoal)
Matheus – Narrativas enriquecem a experiência do leitor (foto: arquivo pessoal)

Julgar um livro pela facilidade com que o texto é capaz de prender o leitor é muito pouco. A boa literatura está em instigar a inteligência e imaginação, como também em permitir sair da tábula rasa de supostas verdades e convicções da nossa zona de conforto para alçar outros pensamentos, sejam eles nobres, inspiradores, poéticos ou até mesmo insuportáveis.

No livro de contos ‘Violeta velha e outras flores’, que marca a estreia de Matheus Arcaro, escritor, professor e artista plástico de Ribeirão Preto, o leitor experimentará todos esses movimentos e poderá revisitar escritores clássicos da literatura por meio das referências ou da forma com que as 22 histórias dessa coletânea são escritas.

A primeira característica a notar nas narrativas de Arcaro são as aproximações com o simbolismo, movimento literário do século 19 que se originou na França, representado por nomes como Charles Baudelaire e Paul Verlaine, entre outros, e que no Brasil teve expressões como Augusto dos Anjos e Cruz e Sousa.

O caráter ‘simbolista’ se manifesta em textos que sugerem a identidade de personagens e das situações, sem defini-los literalmente. “O prazer para o leitor está em emprestar sua subjetividade ao texto para, assim, fechar o círculo dessa instauração estética. Por isso, sugiro em vez de escancarar. Literatura, para mim, é mais erotismo que pornografia”, afirma Arcaro.

O escritor tece ainda uma prosa contaminada de figuras fonéticas, como as aliterações e assonâncias, que são repetições de sons, como na frase “…disseminando os instintos e dissipando os instantes…” ou em “Helena permanecia calada, colada à lateral do carro…”. Essa, aliás, também é uma marca do simbolismo que Arcaro retoma.

Segundo ele, “emprestar poeticidade à prosa é demonstrar, de forma irônica, que não existem gêneros puros. Toda poesia é, em certa medida, narrativa e toda prosa, em certa medida, é poética: a primeira nos propõe um caminho (mesmo que seja para nos levar a lugar nenhum) e a segunda arranja as palavras de tal modo que aquilo tenha (mesmo que minimante) um efeito estético”.

Mas o simbolismo não circunscreve a experiência de ler ‘Violeta velha e outras flores’. Ao mergulhar na obra, o leitor encontrará também marcas do modernismo, como o fluxo de consciência que atravessa o conto ‘Maquinando’, no qual Matheus busca expressar o ritmo angustiante e claustrofóbico de uma cidade grande.

 

Confira a seguir a versão integral da entrevista por e-mail com Matheus Arcaro:

A primeira coisa que me chamou a atenção no seu livro foi o caráter simbolista comum às narrativas. Digo ‘simbolista’ no sentido de que os textos sugerem a identidade de personagens e das situações, sem defini-los literalmente para o leitor. O efeito disso é que o leitor agrega sua imaginação ao conto por meio de uma dinâmica específica com o texto, em que é ele, o leitor, quem reconhece essas identidades. Ao mesmo tempo, a constância dessa característica nos contos revela que essa é uma marca da composição do livro e um recurso que você adota para não perder de vista o leitor. É isso mesmo?

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‘Literatura para mim é mais erotismo que pornografia’ (foto: arquivo pessoal)

Um dos pontos que diferencia a grande literatura da literatura de consumo é que a primeira não subestima a inteligência do leitor. Se aproximarmos a lupa dos livros de ficção que constam nas listas de mais vendidos, veremos que eles têm características semelhantes: “entregam” demais a história, trabalham pouco a linguagem, mantêm-se em pé basicamente pelo enredo. Sartre dizia que escrever literatura é afastar-se da linguagem instrumento. Seguindo esse raciocínio, é lícito distinguir a linguagem em cotidiana (como “instituída”) e a do escritor (como “instituinte”). O prazer para o bom leitor está em emprestar sua subjetividade ao texto para, assim, “fechar o círculo” dessa instauração estética. Por isso, sugiro em vez de escancarar. Literatura para mim é mais erotismo que pornografia. Em relação à “unidade” da obra, creio que o título seja uma espécie de metonímia: a violeta traz beleza em si e a aliteração em V contribui para acentuar foneticamente tal beleza. No entanto, trata-se de uma flor perpassada pelo tempo: beleza e perecimento interseccionados. De modo geral, essa contradição (material com o qual a vida se faz) é a tessitura do livro.

A atmosfera densa e carregada de subjetividades e questões existenciais das personagens não indicaria também a proximidade com o simbolismo? O próprio título ‘Violeta velha e outras flores’ não estaria olhando de algum modo para ‘Flores do Mal’, de Baudelaire, ou outra obra? Quais são as obras e autores que contaminaram esses contos?

Evidentemente todo escritor tem seus “fantasmas”, como diria Ernesto Sabato em um de seus livros de ensaios. Baudelaire vincou minha vida desde a primeira vez que o li, na adolescência. Anos mais tarde reli “As flores do mal” e a obra me bateu com mais violência. Violência no sentido de força de deslocamento. Aliás, Roland Barthes diz que a arte tem esse poder: deslocar o sujeito, tirá-lo de uma zona cômoda. É bem provável que quem se propuser a ler meus contos não se sinta muito confortável. Sob esse aspecto podemos aproximar meu livro da obra de Baudelaire, Rimbaud, Augusto dos Anjos e do simbolismo em geral. Do ponto de vista linguístico, também há semelhanças, principalmente em relação à musicalidade. Contudo, ainda na esfera da linguagem, o livro se aproxima dos modernistas, sobretudo em relação à não-linearidade de algumas narrativas e ao fluxo de consciência. Destaco, nesse quesito, Joyce, Woolf e Beckett. Em terras tupiniquins, Clarice Lispector é minha maior influência.

Outra marca simbolista é que as figuras fonéticas, como as aliterações, também percorrem os textos e representam o recurso com o qual você agrega uma estética poética à prosa. Mas ao trabalhar com as palavras desse modo, não seriam agregados ao texto outras qualidades também, como por exemplo a ironia? O que essa marca de composição representa para você?

Menalton Braff disse, certa vez, que a prosa, para sobreviver, tende a se aproximar da poesia. Concordo. Literatura para mim é predominantemente forma. Borges afirmava que há cinco ou seis temas literários universais; a diferença entre um escritor bom e um razoável está na maneira com que o primeiro conta sua história. Em relação à ironia, muitos dos contos são perpassados por essa figura de linguagem (“Está tudo escrito” é um dos exemplos). Mas vou além: emprestar poeticidade à prosa é demonstrar, de forma irônica, que não existem gêneros puros. Toda poesia é, em certa medida, narrativa e toda prosa, em certa medida, é poética: a primeira nos propõe um caminho (mesmo que seja para nos levar a lugar nenhum) e a segunda arranja as palavras de tal modo que aquilo tenha (mesmo que minimante) um efeito estético.

Lendo seu livro, não pude deixar de lembrar uma palestra que vi outro dia da professora de filosofia Marilena Chauí, em que ela dizia que nos dias de hoje vivemos uma crise de valores simbólicos na cultura. Segundo o raciocínio da professora, as pessoas hoje preferem os ‘sinais’ de riqueza, dados pelos bens de consumo, aos valores simbólicos. Você concorda com isso? E, no caso de concordar, acredita que o seu livro pode ser um antídoto para essa crise, ou não há nenhuma relação?

Concordo em termos com Marilena Chauí. Uso com cautela a palavra “crise” e a expressão “nos dias de hoje” porque vejo, em ambas, um teor moral. É como se houvesse um tempo áureo e, nosso papel, fosse resgatar as virtudes desse período. Mas é evidente que as sociedades contemporâneas capitalistas prezam muito mais o que é imediato e de fácil assimilação do que aquilo que precisa ser “ruminado”, como diria Nietzsche. Isso é notório em sala de aula: a dificuldade interpretativa prevalece entre os alunos de ensino médio. É inequívoco que os meios de comunicação de massa contribuem para tal problema, principalmente a televisão. Isso porque, além de criar necessidades desnecessárias no que diz respeito ao consumo, a TV bombardeia o expectador com movimentos e cores, o que prejudica a capacidade de imaginação. Basta pensarmos que imaginar é colocar imagens em ação, ou seja, atividade. Mas como a televisão cumpre esse papel para o expectador, essa aptidão, aos poucos, vai se atrofiando. É por esse motivo que sempre me posicionei contrariamente aos livros infantis que ilustram seus enredos. Nesse sentido, a boa literatura pode ser um antídoto à passividade, já que é o estimulante por excelência da imaginação.

Qual a importância do narrador em terceira pessoa e do discurso indireto livre para a sua composição? Seria um contraponto à carga subjetiva das personagens? Enfim, o que você pensa sobre isso?

Sob o ponto de vista estritamente formal, o discurso indireto livre empresta dinamismo ao texto, além de suscitar a todo instante a participação do leitor, pois não há marcações nítidas entre enredo e diálogo. Sobre o narrador, concordo com a sua colocação: como a maioria das minhas personagens são densas subjetivamente, o narrador em terceira pessoa contribui para que os estados de experiência interiores estabeleçam relações tanto com o enredo, quanto com o leitor. Todavia, por outro lado, acredito que o próprio conto “exige” ser narrado em primeira ou terceira pessoa. “Condenado à liberdade”, por exemplo, que conta a história de um homem que só encontra a liberdade na prisão, só podia ser narrado em primeira pessoa. Um caso ilustrativo é o conto “Maquinando”, todo ele um fluxo de consciência (sem pontuação alguma) para expressar o ritmo angustiante e claustrofóbico de uma cidade grande.

Agora, falando um pouco do contexto atual, do cenário social em que os escritores produzem literatura: o realismo está em crise? Quer dizer, a partir do momento em que ligamos a TV e somos bombardeados com enredos reais de violência nos noticiários seria preciso pensar a literatura em função disso? Seria preciso buscar na literatura o elo com sentidos e sentimentos que estão fora desse mundo imediato, banal e palatável? O que você pensa sobre literatura e meios de comunicação?

O contexto no qual o autor está inserido influencia, mas não condiciona ou determina sua criação. É natural que alguns artistas se aproveitem do que os circunda para criar (a literatura dita “engajada” é um dos exemplos”). Mas colocar a literatura em função de qualquer coisa é, no mínimo, duvidoso: passa-se da arte ao panfleto em um piscar de olhos. Sobre a literatura como “válvula de escape” da banalidade: é interessante notarmos como a Indústria Cultural faz uso de alguns rótulos como argumento de venda. Um exemplo claro em relação a livros e filmes é o famoso “baseado em fatos reais”. É como se isso fosse um selo de qualidade quando demonstra, justamente, o oposto. Mas por que se usa isso? Os teóricos da Escola de Frankfurt trataram desse tema exaustivamente, mas só destaco um ponto em relação à literatura: o que escapa à expectativa do leitor médio é potencialmente pouco vendável e, por isso, relegado. Tal leitor (que se identifica com os livros de autoajuda precisamente porque estes não abalam seu ponto de vista), tem a necessidade do que é estável, do que tem correspondente na realidade. Mas, afinal, o que chamamos de realidade? Este conceito, no século XX, foi colocado em xeque: há mesmo algo em si? Se sim, ele é captável pelo intelecto ou pela sensibilidade? Depois da física quântica, que nos mostrou que o simples ato de observar influencia o objeto observado, é difícil falar em “realidade”. Tenho um verso que brinca com isso: “realidade é a imaginação de terno e gravata”. Outro ponto importante: mesmo inconscientemente, grande parte das pessoas é cientificista. Basta pensarmos o quão crível é o jargão “cientificamente comprovado”. Na literatura, essa pretensão foi levada às últimas consequências por Zola, no final do século XIX. Influenciado pelo positivismo e pelas descobertas científicas, ele lutou para que o romance fosse “naturalizado”. Escreveu ele em “Romance experimental”: “O naturalismo consiste unicamente no método experimental, na observação e na experiência aplicados à literatura. A retórica não tem lugar nela. Se a medicina deve ser uma ciência, porque seria de outra forma com a literatura?” Lendo essa declaração, penso: quanta pretensão!

 

Violeta Velha - capaVioleta velha e outras flores,

Matheus Arcaro, editora Patuá, SP, 2014, 162 págs.

 

 

Peça da Cia. Artehúmus aborda individualismo e isolamento

Foto: Bob Souza
Foto: Bob Souza

Por Mauro Fernando

(Do Rotunda)

maurofmello@yahoo.com.br

 

O pesquisador teatral Alexandre Mate comenta o texto O Desvio do Peixe no Fluxo Contínuo do Aquário no nº 2 (março de 2014) da Ateliê Compartilhado, publicação da Cia. Artehúmus. A peça, segundo Mate, “apresenta-se prenhe de significados, provoca diversas interpretações: trata-se de um título-metáfora”. “Apesar de o título ser absolutamente provocante e instigante, a obra, dentre outras questões, denuncia o reificado (como coisificação) das comunicações e relações humanas”, conclui. A montagem reestreou nesta terça-feira (11/11), no Teatro do Incêndio, em São Paulo.

Uma das questões que O Desvio do Peixe aborda é a solidão relacionada ao individualismo exagerado, em um processo que engloba movimentos de isolamento e tentativas de aproximação. “A peça fala das ausências de nossos dias, das negligências com nós mesmos. Somos engolidos diariamente por necessidades ditadas por um sistema e não percebemos nossas esquizofrenias, nossas pequenas loucuras invisíveis para realizar o que o sistema dita”, sintetiza Evill Rebouças, responsável por dramaturgia e direção.

Cristiano Sales, Daniel Ortega, Edu Silva, Natália Guimarães e Solange Moreno compõem o elenco. Cinco personagens convivem em um condomínio. Um porteiro precisou ler o filósofo Michel Foucault para ser admitido no emprego. Um pai procura o significado da palavra “ausência” para um trabalho acadêmico. Uma mãe tenta ser ecologicamente correta. Uma jovem espera pelo namorado que viajou. E um garoto anuncia, logo no início do espetáculo, que está morto.

O Projeto Teatro de Condomínio – Cartografia Pública e Privada, contemplado pelo Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, deu origem à montagem. Um ano de pesquisa de campo, conta Rebouças. “Em albergues, todos estão juntos, mas pouco espaço existe para falarem de suas aflições mais íntimas. Nos cdhus, ocorre o contrário: geralmente, cada um socorre o outro diante das aflições diárias. Nos condomínios de luxo, os moradores nem se conhecem direito, já que possuem elevadores privados. Foi desse painel de relações que construímos a ficção de O Desvio do Peixe.”

Trata-se de espetáculo delicado e pungente. “A delicadeza impressa na cena foi uma necessidade em relação ao tema, pois se há isolamentos entre as figuras da ficção, o mesmo não ocorre entre essas figuras e o espectador. Para atingir esse estado de aproximação e cumplicidade, tivemos de jogar fora praticamente todo o repertório teatral convencional que trata o espectador como sujeito que especta apenas. Por outro lado, são figuras que se mostram doces, mas ao mesmo tempo, parecem querer explodir. Esse trabalho de retenção é talvez o que há de mais cruel na encenação”, explica.

Os atores narram cenas e conversam com o público, entre outros recursos que negam o ramerrão teatral. “O enredo é descortinado para que o espectador não desvie seu olhar para aquilo que ainda precisa ser descoberto”, assinala Rebouças. “Por meio desse tipo de estrutura, conseguimos potencializar o olhar do espectador para a reflexão dos assuntos discutidos e ainda tratá-lo como confidente das personagens. Em busca da autonomia do espectador em relação à história, desenhamos trajetórias fragmentadas, de modo que ele monte o trajeto de cada um.”

 

SERVIÇO

O DESVIO DO PEIXE NO FLUXO CONTÍNUO DO AQUÁRIO. Dramaturgia e direção de Evill Rebouças. Com a Cia. Artehúmus. No Teatro do Incêndio. Rua da Consolação, 1.219, São Paulo, SP. Fone (11) 2609-8561. Terças e quartas, às 20h (em novembro), e terças a quintas, às 20h (em dezembro). R$ 30. Até 17/12.

A voz dos Black Blocs

Mascarados_black_blockDesde que os jovens ocuparam as ruas da cidade nas manifestações de junho de 2013, tornou-se rotina para a mídia e para boa parte da população reproduzir o discurso que classifica os ativistas mascarados da tática Black Blocs como vândalos, baderneiros e outras qualificações semelhantes. Todas elas parecem guardar em comum a reprovação incondicional à violência, mas também são rótulos que encobrem o que esses ativistas têm a dizer.

A falta de capacidade de ouvir o outro é um dos males do País hoje, é o que esteve por trás das manifestações de ódio durante o processo eleitoral no mês passado. As 2,5 mil pessoas que há poucos dias foram à avenida Paulista pedir a volta dos militares ao poder também mostram-se movidas por esse ódio, já que se dispõem a atropelar a democracia, porque não é possível suportar aquilo que é diferente ou as mudanças que o País conquistou.

Para os mais radicais e insensíveis, a triste notícia é que a realidade é multifacetada e se compõem da visão de todas as pessoas, inclusive, os Black Blocs, cuja voz pode ser conhecida no livro ‘Mascarados: A verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc’, de autoria da socióloga da Unifesp Esther Solano e dos jornalistas Bruno Paes Manso e Willian Novaes.

Desde agosto do ano passado, Esther pesquisou o grupo, acompanhando as manifestações. Ouviu dezenas de jovens e se concentrou na produção do livro para ajudar o leitor a entender um pouco mais sobre as razões da violência. Desde o princípio, os ataques aos bancos e ao patrimônio público na avenida Paulista, bem como os enfrentamentos com a Polícia Militar, mostram um caráter simbólico.

“A mensagem talvez seja que a sociedade não está pronta para assumir, por exemplo, que a raiva do Black Bloc é um sintoma, que os problemas estruturais da polícia são sintomas que estão explicitando as úlceras do atual modelo social brasileiro”, afirma Esther no livro, enfatizando que a realidade está além das verdades absolutas e que os jovens, a maioria de classe média baixa, buscam ser ouvidos.

O jornalista Bruno Paes Manso cobriu as manifestações dos Black Blocs como repórter do jornal ‘O Estado de S. Paulo’. Seu relato na segunda parte do livro mostra como o jornalista mudou sua visão do movimento ao longo da cobertura, não se resumindo simplesmente a classificar os ativistas como vândalos. Na parte final, o jornalista Willian Novaes reúne depoimentos dos jovens que protagonizaram os atos e traz também uma entrevista com o coronel da PM Reynaldo Simões Rossi, que foi ferido em uma das manifestações.

 

Mascarados: A verdadeira história dos adeptos da tática Black Bloc,

Esther Solano, Bruno Paes Manso e Willian Novaes, Geração Editorial, SP, 2014, 336 págs.