Rapidíssimas

PAPO DE BOTECO

— Já vi tudo, Aderbal. Tomou todas. Não é?

— Não seja besta, Durval. Só tomo da mesma.

 

VITRINE & BOLSO

A falta de grana aniquila o bom gosto.

 

BACIA DAS ALMAS

Sei que o barato sai caro, mas é o que dá para comprar.

 

OCASIÕES

Elas só produzem ladrões pés de chinelo. Os “tops de linha” criam as ditas cujas.

 

ENVELHECEU

Comove-se por tudo, choraminga por qualquer coisa, em especial quando vai buscar o auxílio previdenciário no banco.

 

JOGO DO BICHO

Sonhou com a tia (gorda que só). Jogou no elefante. Deu vaca.

 

(Inspirado, claro, em GAETANINHO, de Antonio de Alcântara Machado. Livro lançado, salvo falha da memória trôpega, em 1928.)

 

Orlando Silveira orlandosilveira@uol.com.brorlando3

Blog: http://orlandosilveira1956.blogspot.com.br/

Adriana Grechi investiga o desejo

Núcleo Artérias expõe olhar crítico sobre a sociedade (Foto: Edson Kumasaka)
Núcleo Artérias expõe olhar crítico sobre a sociedade (Foto: Edson Kumasaka)

 

Por Mauro Fernando

maurofmello@yahoo.com.br

Investigar artisticamente o desejo na sociedade de consumo. É o que o Núcleo Artérias, dirigido pela coreógrafa Adriana Grechi, se dispõe a fazer em Escuro Visível, que estreou ontem,19, e cumpre temporada na Galeria Olido, em São Paulo, até domingo (dia 22), com entrada franca. Trata-se do nono espetáculo do Núcleo Artérias, ex-Cia. 2 Nova Dança, criado em 2003.

Três intérpretes-criadoras (Carolina Minozzi, Lívia Seixas e Nina Giovelli) traduzem para a linguagem da dança questões como o conflito ideológico entre individualismo e ação coletiva e a confusão entre desejo e necessidade, fomentada pela publicidade. “O desejo é utilizado como propulsor da sociedade de consumo”, justifica Adriana.

O desejo individual – simbolizado no “funk ostentação, por exemplo” – em oposição a ideais coletivos é o assunto da montagem, mas a coreógrafa revela que também interessa à companhia outra indagação, que interage com o tema central: “Pensar como as conexões se dão na coletividade”. Ou seja, como as pessoas se influenciam mutuamente, já que o ser humano é gregário, sociável.

Outra questão que Carolina, Lívia e Nina buscam esquadrinhar em seus corpos é a transformação – “o fio condutor do trabalho”, conforme Adriana. É possível imaginar, então, “uma pequena utopia: uma sociedade em transformação a partir dos desejos de cada um, com uma grande conexão de afetos”.

Cabe, pois, refletir sobre “uma utopia da coletividade”. Não, porém, uma sociedade “em que todos fazem as mesmas coisas”, esclarece a coreógrafa, não uma coletividade padronizada, mas uma “de indivíduos diferentes”: “Uma sociedade que abriga uma diversidade de interesses e que mantém suas conexões vivas”. Em outras palavras: “O desejo de cada um inserido no coletivo”.

Adriana confirma haver em Escuro Visível “uma busca por uma alternativa ao consumismo, por um tipo de resistência”. E também “um olhar sobre um desejo mais vital”, no qual está embutido “algo primitivo, básico, necessário para a existência”. “Um depende do outro no sistema coletivo”, lembra.

O afeto constitui outro eixo de discussão no espetáculo. “O afeto é o que conecta as pessoas”, diz Adriana. Como trabalha-se com o “corpo poroso, permeável”, as intérpretes-criadoras deixam-se “contaminar pelos afetos” e permitem “transformar-se a partir da percepção do outro”.

 

SERVIÇO

ESCURO VISÍVEL. Concepção e direção de Adriana Grechi. Com o Núcleo Artérias. Na Galeria Olido. Avenida São João, 473, São Paulo, SP. Fone (11) 3331-8399. Hoje a sábado, às 20h, e domingo, às 19h. Entrada franca. Recomendação: 12 anos.

Eles que se linchem

Em sua época mais reflexiva, menos produzida e mais contundente, há cerca de duas décadas, o cantor Caetano Veloso disse na música ‘O cu do mundo’ que a mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores. O cantor compôs a música quando alguns poucos casos de linchamento chocaram a Bahia.

Hoje perdemos a conta dos casos de linchamento que enchem páginas de jornais e sites, além de serem exaustivamente repetidos na TV, unindo-se ao conteúdo das pessoas comuns que sacam seus celulares, fotografam, escrevem ou filmam em tempo real. Somos ou estaríamos caminhando para ser a mais triste nação vivendo na época mais podre?

Mesmo quando já existiam celulares conectados à internet e o afã no uso das redes sociais, o número de casos de linchamentos não se mostrava relevante a ponto de pautar a imprensa ou discussões acaloradas em almoços de famílias ou mesas de bar. Uma sequência de fatos parece ter desencadeado na população, sobretudo na de classe média, o gosto pelo comportamento justiceiro.

Quando uma pessoa é amarrada a um poste e apanha até sangrar com os aplausos de quem assiste – senão com suas porradas –, é sinal de que há algo podre no reino Tupiniquim. No início deste mês (3/5), a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, mãe de duas meninas, foi linchada por moradores do bairro de Morrinhos, no Guarujá, por ser confundida com uma mulher que supostamente sequestrava crianças para praticar “magia negra”.

Fabiane não foi a primeira e nem será a última vítima dos linchamentos que têm se tornado comportamento cada vez mais comum na sociedade. Antes dela, meninos foram acorrentados, estapeados e chutados em diversos locais do Brasil. Os motivos ou suspeitas de seus crimes chegariam a tornar a notícia engraçada não fosse a desgraça que vai por detrás e que geralmente relaciona-se com a desigualdade: xampus, passando por IPhones e desejados tênis Nikes, e até galinhas, são produtos de necessidade ou consumo que lhes rendem as surras e exposição midiática.

É interessante pensarmos sobre o direito a julgamento destes que estão sendo linchados e sobre onde esse rompimento da lei pode nos levar (ao cu do mundo, talvez). Se depender da impulsividade agressiva e tendência ao ódio de alguns, o país transforma-se numa grande fortaleza dividida por dois muros, dois mundos, ambos extremamente altos e hermeticamente fechados, incomunicáveis: a prisão dos pobres e a prisão de luxo dos ricos. “E se ela (Fabiane) fosse culpada?”, questiona-se Eliane Brum em artigo sobre o tema publicado no site do El País na segunda-feira (12/5).

A autora mostra como a valorização da inocência de Fabiane, que atingiu as pessoas como espécie de mea-tigela-culpa, mas apenas depois da moça ter morrido, pode ser um comportamento no fundo extremamente cruel. Se Fabiane fosse culpada, caberia o linchamento em lugar de um julgamento? “É a exacerbação da inocência que mostra o quanto nós – mesmo os que não lincham pessoas na rua – somos perigosos”, completa a jornalista.

No caso Fabiane há ainda um agravante. A imprensa noticiou que traficantes de Morrinhos, onde aconteceu o crime, executaram suspeitos de terem matado a mulher. É o linchamento dentro do linchamento. Se verdadeira, a notícia mostra quão cíclico é este novo comportamento assumido em diversas esferas da sociedade. A polícia que não protege, o Estado que não defende “o cidadão de bem”. Estas são as falácias da classe média que acredita na justiça pelas próprias mãos.

O que essas pessoas pensam das estatísticas que mostram que a maioria das pessoas vitimadas pela violência são moços negros e pobres? Se o Estado defende a classe média tão mal quanto defende os moços negros pobres, a saída está em tornarmo-nos todos justiceiros? E com que parâmetros? A justiça para mim não é a mesma justiça para você. Por mais que as imposições de um comportamento consumista colaborem com homogeneidade do pensamento, as pessoas ainda se diferenciam por seu repertório cultural, influências sociais e outros inúmeros fatores. Ainda bem. Há que se pensar sobre o alastramento dos linchamentos.

Se tomarmos como parâmetro ‘O cu do mundo’, música de Caetano, somos, com certeza, uma triste nação na época mais podre. Parece que está tudo bem? O parecer é sempre um estado ilusório, uma assemelhação. É tão fake como os programas de segurança do Governo feitos para aumentar a sensação de segurança da população; é como se dissessem: “fizemos o que pudemos, agora eles que se linchem”. Somos todos linchadores, mas não gostaríamos de ser.

Marina Moura2Marina Moura

E-mail: mmourabarreto@gmail.com

Suspense e conspirações com o romance ‘O Código Numerati’

Uma das coisas mais interessantes ao procurar um livro é encontrar boas obras fora do mundo das celebridades literárias, entre os escritores independentes. No caso, o livro que me chamou a atenção nos últimos dias foi o romance “O Código Numerati – Conspirações em Rede”, de autoria da escritora paraibana Andrea Nunes, que também atua como promotora de justiça no Ministério Público de Pernambuco.

Andrea – Romance policial e abordagem de problemas atuais (foto: divulgação)
Andrea – Romance policial e abordagem de problemas atuais (fotos: divulgação)

Com experiência em investigações sobre corrupção e especializada no polêmico assunto da gestão das ONGs, instituições que por vezes viram fachada de operações escusas ou ilegais, Andrea escreveu em 2010 um romance policial que claramente se inspira em “O Código Da Vinci”, de Dan Brown, e no livro “Numerati”, do jornalista norte-americano Stephen Baker, que aborda a transformação social, econômica e política provocada pelo rastreamento de dados de pessoas na internet.

No romance de Andrea, a dinâmica do enredo policial parte do mistério sobre as significações das inscrições rupestres no sítio arqueológico de Pedra do Ingá, na Paraíba. Uma jovem arqueóloga e um delegado buscam desvendar o assassinato de um cientista da empresa Numerati, que trabalhava em um relatório sobre o material pré-histórico e sua possível relação com a existência de seres extraterrestres.

A escritora adota referências verdadeiras para detalhar a história, como locais, documentos e instituições, e isso acaba tornando o texto ao mesmo tempo ficção e retrato de problemas que afligem a sociedade, como a atuação ilegal de ONGs e a espionagem de dados na internet. O romance conta ainda com uma abordagem política e traz para o contexto da história a tramitação do Marco Regulatório da Internet no Brasil, que até hoje não foi votado pelo Congresso, apesar da falta de privacidade na rede ser crescente.

Andrea afirma que se sensibilizou para a questão da internet pelo fato de ter uma filha adolescente. “Percebi que a chamada geração digital é frágil, devassada, se expõe sem limites na rede mundial e não se sabe ainda que consequências isso terá a longo prazo”.

No romance, ao aproximar esse tema universal do regionalismo por meio da Pedra do Ingá, Andrea retoma a tradição dos escritores do Nordeste, que sempre abordaram o sertão em suas perspectivas locais e universais. O leitor também vai perceber que a escritora desenvolve com conhecimento de causa o processo investigativo. “Devo ao Ministério Público minha paixão pela investigação, pela discussão da ética até o seu limite e, claro, é impossível dissociar da literatura o conhecimento adquirido”, afirma.

Andrea Nunes - capaO Código Numerati, Conspirações em Rede,

Andrea Nunes, editora All Print, SP, 2010, 232 págs.

 

 

Confira a seguir entrevista por e-mail com a escritora Andrea Nunes:

Quem é Andrea Nunes e qual sua relação com a literatura? Você escreveu outros livros?

Sou o membro mais jovem da Academia Feminina de Letras e Artes da Paraíba (cadeira nº 25). Sou autora dos seguintes livros:

“O diamante cor de rosa”, gênero infantil, publicação em 1988, Gráfica Santa Marta-PB, publicação e distribuição local, rendeu o Troféu Parahyba de imprensa como melhor obra literária infantil publicada no Estado (1991). Adaptado para o teatro, arrebatou também o troféu “Baile dos Artistas”, melhor adaptação de obra literária ao teatro (1990).

“Papel Crepom”, gênero romance, Editora Ideia (PB), publicação em 1992, com distribuição local.

“Terceiro Setor – Controle e Fiscalização”, gênero jurídico, Editora Método (SP), publicação e distribuição nacional, com duas tiragens esgotadas e mais de mil livros vendidos.

Sobre minha relação com a literatura, nasci prestando atenção, querendo entender. Desde então apreendo o mundo com avidez, coleto histórias, olhares, pessoas, ideias e cenários. Aí, através dos livros, descobri que as palavras eram um fio condutor para eu devolver ao mundo tudo isso que eu coletava dele e ficava elaborando. Desde então escrevo porque preciso, porque o turbilhão de pensamentos e emoções vai se encaixando nessas palavras, ganhando forma e sentido.

 ‘É difícil para mim identificar algo casual nos romances que escrevo. Penso e repenso, escrevo e reescrevo, leio e reviso cada página. E ainda assim alguns detalhes escapam’
‘É difícil para mim identificar algo casual nos romances que escrevo. Penso e repenso, escrevo e reescrevo, leio e reviso cada página. E ainda assim alguns detalhes escapam’

Em que ano você escreveu o “Código Numerati”? Você assume a influência do livro do Stephen Baker, mas o livro/filme Código Da Vinci também influenciou sua obra? Há outras influências?

O livro foi escrito no ano de 2010. O “Código Da Vinci”, como um grande best-seller, tem algo a ensinar. Percebi através dele que o mundo contemporâneo esperava mais do escritor de romance policial: ele esperava que, além do velho clichê morte-mistério-clímax-revelação da trama, a obra agregasse conhecimentos, curiosidades históricas, mesclando com temas polêmicos da modernidade. Agora, ao aproveitar a fórmula, não é preciso absorver o estilo. Tentei captar isso, mas acrescentei outros elementos que os leitores sentem falta em Dan Brown, como, por exemplo, uma maior complexidade psíquica dos personagens, a dimensão ético-filosófica que é discutida como valor contemporâneo e os elementos regionais presentes na trama.

Essa preocupação com a privacidade na rede ainda é nova. Até aqui, as pessoas estavam como que deslumbradas com as redes sociais e somente agora parece começar a despertar uma certa consciência sobre o tema em meios mais populares. Como você se sensibilizou para o tema?

Primeiramente, pela vivência de ser mãe de filha adolescente. Percebi que a chamada geração digital é frágil, devassada, se expõe sem limites na rede mundial e não se sabe ainda que consequências isso terá a longo prazo. Em segundo lugar, na minha vivência profissional, percebi que as tais informações disponíveis na web já eram uma das principais fontes de investigação das pessoas, que estavam espontaneamente abrindo suas vidas para todos nas redes sociais. Percebi, por exemplo, que a Polícia Federal não precisa mais devassar um banco de dados sigiloso de um suspeito detido no aeroporto. Suas redes sociais, em geral, dirão mais sobre ele do que os arquivos secretos e bancos de dados oficiais.

Seu texto é objetivo, de impacto visual e recortado como as cenas de cinema. Você gostaria de ver o seu livro virar filme? Já o escreveu pensando nisso?

Não o escrevi pensando nisso, pois geralmente escrevo pensando em histórias que eu simplesmente gostaria de ler. Mas gostaria de vê-lo nas telas, claro. O impacto visual é proposital mesmo. É um livro para se enxergar a cena, é a ferramenta necessária para atrair um público cada vez mais multimídia. Mas ele enxergará a cena se inquietando e refletindo pelo que a trama representa.

Você usa dados reais para construir sua história, e parece mesmo conhecer os bastidores do poder, creio que por conta de sua atuação profissional no Ministério Público. O quanto sua experiência no MP foi importante para esse trabalho?

Devo ao Ministério Público minha paixão pela investigação, pela discussão da ética até o seu limite, e, claro, é impossível dissociar da literatura o conhecimento profissional adquirido, principalmente na minha área de atuação, onde tenho treinamento em inteligência, e lido constantemente com o poder por investigar casos de corrupção.

E sobre a Pedra do Ingá… As pesquisas de fato têm avançado para decifrar os símbolos? O que há de concreto sobre isso?

A Pedra do Ingá, tombada como Monumento Nacional, é realmente o sítio arqueológico mais famoso do Brasil, e um dos mais misteriosos do mundo. Todas as informações colocadas no livro sobre ela, inclusive as teorias sobre os símbolos terem sido insculpidos por extraterrestres, são retiradas de pesquisas arqueológicas verídicas, embora, naturalmente, não comprovadas. O historiador Wanderlei de Brito tem se debruçado há décadas sobre o mistério, bem como os pesquisadores Gilvan de Brito, Aurélio Abreu, Fernando Moretti e muitos outros.

Você aproxima um tema universal, a Internet, do regional, a Pedra do Ingá. Ao mesmo tempo faz ficção com dados reais, de tal modo que o seu romance tem várias faces e parece ter sido pensado sobre um roteiro bem estudado. Há alguma coisa no romance que foi casual, ao sabor do momento em que você escrevia?  

É difícil para mim identificar algo casual nos romances que escrevo. Penso e repenso, escrevo e reescrevo, leio e reviso cada página. E ainda assim alguns detalhes escapam. Talvez a descrição e alguma característica dos personagens secundários sejam o que mais se aproxima do casual, quando estou suscetível a alguma coisa que minha mente armazenou no cotidiano recente, como as pulseiras ruidosas da irmã da protagonista. Posso dizer também que não tive consciência, enquanto escrevia, do quanto o romance reflete a influência de Foucault na minha formação. Apenas depois que alguns versados em filosofia identificaram essa nuance é que pude ver que, de forma casual, o romance transborda os ensinamentos de Foucault sobre a sociedade do controle e relações de poder. Mas tirando esses aspectos, praticamente nada é por acaso, mas é tudo rigorosamente forjado para dar uma impressão de leveza e simplicidade.

Caso de loucura feminina

O universo feminino em ebulição é uma das marcas do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Seja em “Mulheres à beira de um ataque de nervos” (1988), “De salto alto” (1991) ou, mais recentemente, em “A pele que habito” (2011), a feminilidade e seus enigmas formam um núcleo nos filmes do diretor, cujas histórias são temperadas quase sempre com fatos absurdos, irreverência, assassinatos, suspense e personagens que encontram seu desejo à margem da moralidade.

Almodóvar – Cinema e literatura com abordagem dos enigmas da mulher
Almodóvar – Abordagem dos enigmas da mulher

Essa receita, que no caso de Almodóvar parece inesgotável, está presente também no livro “Fogo nas entranhas”, que ele escreveu em 1981, segundo a humorista e atriz Regina Casé, que assina o prefácio, antes de fazer sucesso como um dos maiores diretores de cinema na Espanha. Almodóvar começou sua carreira criando fotonovelas e filmes pornográficos, o que influenciou sua visão recortada da intimidade dos personagens, algo que se repete em sua produção.

“Fogo nas entranhas” é uma novela “safada”, como diz Regina Casé, que amarra o leitor pelas características de humor e pelas situações inimagináveis, mas que vai além dos sentidos literais com as possibilidades de expressão da alma feminina e praticamente convida o leitor a deixar e as convenções de lado e a se entregar a seu verdadeiro gozo, que está em algum lugar fora do casamento ou de outro compromisso.

O texto de Almodóvar tem a mesma intensidade das imagens em seus filmes. Frases curtas e diretas, com um narrador absolutamente oculto, colocam o leitor em um espaço em que as imagens são às claras. O texto é praticamente um enredo de cinema, e o episódio central é protagonizado por um chinês que tem uma fábrica de absorventes íntimos em Madri e cinco amantes.

Cada uma das mulheres que passa pela vida do chinês o abandona e na última delas, Raimunda, que o deixa para se casar com um poeta, ele comete suicídio para se vingar da moça. A fábrica fica de herança para as amantes, os negócios seguem adiante e, dias depois, é colocada no mercado uma linha de absorventes revolucionária, distribuída gratuitamente para promover a marca durante uma semana.

A partir do uso do tal absorvente, as mulheres de Madri passam a atacar os homens, sedentas de sexo, pois essa é a única forma de acalmar seu desejo. Depois, as amantes descobrem que o produto íntimo tinha um veneno que desencadeou esse processo de loucura coletiva nas mulheres. Como o texto é curto e coeso, dificilmente o leitor vai desgrudar da história antes do seu fim.

 

Pedro Almodóvar - capa2Fogo nas entranhas,

Pedro Almodóvar, tradução de Eric Nepomuceno, editora Dantes, Labortexto, RJ e SP, 2004, 124 págs.

Onde encontrar: www.estantevirtual.com.br

‘O cordel é essencialmente oral’

Janduhi: adaptação de obras clássicas para o cordel
Janduhi: adaptação de obras clássicas para o cordel

Confira a entrevista do escritor paraibano Janduhi Dantas para o blog Livros & Ideias:

Sabemos que a oralidade, ou as histórias contadas, são uma fonte de inspiração para a literatura de cordel. Atualmente, com a mídia de massa e tantas diferentes possibilidades de comunicação e informação, a oralidade continua sendo referência para a produção de cordel?

A meu ver, é fundamental a projeção da linguagem oral no cordel. Há cordelistas que, diante da evidência que tem tido o cordel nesses últimos tempos,  acham que se deve “escrever bem”, com cuidado com a forma, respeitando as regras da norma culta, da gramática. Eu particularmente acho que o cordel nada tem a ver com erudição. O cordel é um tipo de texto escrito por pessoas do povo; simples, acessível, bem ao gosto popular. O cordel é essencialmente oral. A presença da oralidade é traço marcante do cordel, que tem também como outros fortes elementos a métrica e a rima.

Quantos títulos você tem publicado? Quantos exemplares somam esses títulos?

Tenho perto de 20 títulos publicados. São edições (em sua maioria independentes, do autor) com tiragem total que ultrapassa o número de 50 mil exemplares; colocados à venda principalmente em bancas de revista de Patos, Campina Grande e João Pessoa, todas cidades da Paraíba. Chamo de edição cada tiragem de mil exemplares. O cordel A mulher que vendeu o marido por R$ 1,99 (que até já serviu de mote para uma crônica de Xico Sá na Folha de S.Paulo) já está na 12ª edição.

A métrica e os temas de vaqueiros e cangaceiros são essenciais para a literatura de cordel. A produção atual mantém essa tradição ou aponta para alguma inovação em termos de forma e conteúdo?

Sim, o cordel inova em forma, conteúdo e abordagens. Porque, assim como a vida, o cordel é dinâmico. Não vivemos hoje a época do cangaço. Mas que temos hoje? Os ataques de bandidos a delegacias de polícia, fóruns etc. É o que hoje acontece em nossa sociedade que os cordelistas estão abordando. Mas com uma linguagem de cordel, essencialmente narrativa e oral.

Quanto à forma, apresentação visual, é difícil querer que o cordel se apresente somente no formato tradicional, tamanho 11 cm x 15 cm, capa xilogravura. Quanto mais se consiga manter a forma melhor, mas é perfeitamente compreensível e aceitável que o cordel venha com formato diferente, novo. Acho que importante mesmo é o texto, o conteúdo. Mesmo que o cordel venha com capa colorida, papel couchê, ilustrações coloridas no miolo, o importante, fundamental mesmo, é o texto. Um texto que você vê, lê e diz: Isso é cordel! A história do homem que trocou a mulher por uma jumenta: humor, gracejo; isso é cordel.

Eu defendo e desejo que o cordel seja fundamentalmente uma “estorinha”, uma narrativa em versos metrificados e rimados. Mas há espaço também para os cordéis descritivos e até dissertativos, sobre pessoas, lugares e temas. Sou também autor de uma gramática em versos – Lições de Gramática em versos de cordel – publicado pela Editora Vozes, já em sua 4ª edição. Mas esse livro, no meu entender, não se trata de um “cordel”, é apenas um livro que se serve de elementos do cordel, como as estrofes sextilhas, por exemplo. Mas há quem entenda (cordelistas) que tudo é cordel.

E sobre seus trabalhos recentes?

Ultimamente, tenho me dedicado a adaptações. Transpus para o cordel um conto de Leon Tolstoy, já publicado pela editora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). E está para ser publicado, também pela UEPB, Menino de Engenho em versos de cordel. Semana passada, concluí a adaptação de Psicose, o filme de Alfred Hitchcock. No cordel, ficou A história da mulher que roubou pra se casar. Esse trabalho, não sei se procuro uma editora ou se publico independente.

O que seria necessário ainda conquistar para que a literatura de cordel seja valorizada na cultura?

O cordel está muito bem valorizado mo momento em todo o País: novela da Globo, há bem pouco tempo; enredo de escola de samba… O que falta ao cordel (que é cultura, literatura popular) falta também à cultura em geral no país: ser visto como importante pelos gestores públicos. O cordel, por exemplo, pode contribuir muito no processo de leitura de nossas crianças; porque o cordel é de fácil leitura.

Qual a importância do universo cultural da cidade de Patos na sua produção?

Sempre que posso, incluo Patos em meus cordéis, como referência, como identificação do autor. Já fiz o Guia Turístico da Cidade em cordel.

(foto: divulgação)

Dalton Trevisan e a escrita sem concessões

O escritor curitibano Dalton Trevisan comemorou seus 87 anos na última quinta-feira, em data que não podia estar mais cercada de boas notícias. Em maio, Trevisan recebeu o Prêmio Camões, criado por Brasil e Portugal, e considerado o mais importante da língua portuguesa, e em junho foi laureado com o Machado de Assis, da ABL (Academia Brasileira de Letras), pelo qual receberá R$ 100 mil no próximo mês, nos 115 anos da Academia.

O contista de relatos ácidos, concisos, esquisitos ou misteriosos é candidato também ao prêmio Portugal Telecom, que será anunciado em novembro.  Concorrendo na categoria conto/crônica com o livro ‘O anão e a ninfeta’, de 2011, que reúne 40 histórias, Trevisan enfrentará nomes como os de Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão, Luis Fernando Veríssimo, Maria Rita Kehl e Lygia Fagundes Telles.

Uma das raras imagens do escritor, que é avesso à imprensa / foto: Julio Covello

Dalton Trevisan é um artista avesso à imprensa, a fotografias e às frivolidades da vida cultural. Prefere a rotina reclusa e não faz concessões em sua arte, o que, aliás, foi um dos fatores que pesou na decisão do Prêmio Camões, segundo o escritor Silvano Santiago, que atua no júri.

Um de seus livros mais famosos é ‘O vampiro de Curitiba’, de 1965. Mas não é possível dizer que Trevisan tem esta ou aquela obra como emblemática. Sempre no exercício do conto, o escritor é mestre em roubar histórias do dia a dia, de gente simples e que se mostra, ao mesmo tempo, como sintoma das feridas do tempo presente e como expressão do eterno espírito humano.

É como se o artista estivesse à espreita pela cidade, produzindo flagrantes dos atos de seus personagens mais desprezíveis e atormentados. Nos últimos dias, por exemplo, percorri as páginas de ‘Desastres do amor’, um título de 1968, que traz 23 contos, a maior parte deles protagonizados por um ‘João’ e por uma ‘Maria’.

Fiquei aterrado com o conto ‘Nove’, que coloca em cena um casalzinho de namoro em uma rua escura, oito da noite, ele regateando um beijo e ela recusando, quando um bando de marmanjos surge e estupra a moça, sendo que o namorado se esconde, como se aquilo não fosse com ele. Nada mais revelador das nossas misérias.

Gostei também do conto ‘Canário, broca, valsinha’, em que João é um dentista que morria de ciúme de sua Maria, mas acaba por casar com Joana, “feia mas simpática”, como diz o narrador. João opera uma broca a pedal, como os dentistas do século 19, e tem hábitos estranhos – ele coloca batatas na testa para atenuar sua calvície. É também viciado em éter, um elemento presente em outros contos desse livro, que revela um hábito do consumo de drogas nos anos 60.

Desastres do amor,

Dalton Trevisan, editora Record, RJ, 1979, 134 págs.

Rio+20 e as crianças: razões para as coisas durarem mais

Pneus descartados sem critérios: problema ambiental

A má distribuição de renda faz com que 26,3 milhões de toneladas de alimentos ao ano — que dariam para oferecer o café da manhã, almoço e jantar diários para 19 milhões de pessoas –, sejam jogadas no lixo. Além disso, 30 bilhões de toneladas de lixo por ano são jogadas no nosso planeta. Só no Brasil, 100 milhões de pneus estão espalhados nos aterros, rios, terrenos baldios e em mais de 3 mil lixões distribuídos pelo país.

Preservar, conservar e não desperdiçar. O livro ‘Seis razões para as coisas durarem mais’ mostra que o novo nem sempre é melhor que o velho e ser consumista não é nada sustentável.

Nossas coisas (brinquedos, roupas, material escolar, objetos pessoais, coisas de casa e alimentos em geral) precisam de carinho e cuidados e consertar nos faz aprender muito sobre seu funcionamento. Quando não se quiser consertá-las, uma boa opção é doá-las ou encontrar uma nova finalidade para elas. Também podemos consertar nossas amizades e isso nos faz crescer e nos tornarmos mais felizes.

Os autores mostram que a natureza também precisa de cuidados e podemos preservar a vida e os recursos naturais em nossas ações do dia a dia, como no banho, na escovação de dentes, de modo a obter economia de água. Diminuir o uso do carro, pensar sobre o destino do lixo, economizar papel, são formas de preservar o ar puro, os solos, mares e rios despoluídos e toda a biodiversidade preservada.

Sexto livro da série Seis razões, a obra é escrita em linguagem poética e informativa. Indicado para pais, filhos e educadores, sugere alternativas inteligentes para o bem de todos, com pequenas substituições que podem continuar a deixar nossa vida confortável, como o uso de sacolas retornáveis e produtos ecologicamente corretos, biodegradáveis, que geram economia planetária e não poluem.

O livro mostra também que é preciso buscar boas ideias para que as pessoas ganhem mais tempo, reduzam gastos, economizem recursos, dinheiro e ampliem os horários para a vida em família, e também ajudem na preservação ambiental. Vale também estimular as iniciativas contra o desperdício e as propostas de ajuda social e ambiental (como a doação de roupas, brinquedos, móveis).

Outro exemplo é dar um bom destino aos restos de alimentos que desperdiçamos nas lixeiras e que são bons fertilizantes orgânicos, tais como casca de ovo, de frutas, pó de café, pão velho que, despejados com cuidado nos vasos, ajudam as plantas a ficarem mais fortes sem a necessidade de adubos químicos.

O leitor jovem poderá saber ainda como funciona uma casa sustentável e terá sugestões e referências bibliográficas sobre os temas propostos, além de iniciativas bem sucedidas como o projeto JUMA, no Amazonas.

(Fonte: editora Escrituras / foto: divulgação – Agência Brasil)

 

Seis razões para as coisas durarem mais,

Nílson José Machado, Silmara Rascalha Casadei e Michele Rascalha, com ilustrações de Vera Andrade, editora Escrituras – lançamento sábado, 16 de junho, das 16h às 19h, na Livraria da Vila – Lorena (piso térreo), Alameda Lorena, 1731 – Jardim Paulista – São Paulo.

 

Crime e poder na visão de Lucrécia Bórgia

M. G. Scarsbrook é escritor, historiador e roteirista

Sou pouco afeito a romances históricos, por achar que esses textos nem sempre são ricos de significados. Mas na semana passada me rendi a um deles depois que comecei a ler as primeiras páginas por curiosidade e quando dei conta percebi que a leitura avançava com fôlego incomum, movida pelo texto coloquial e por um clima misterioso em torno de crimes, o que me remetia aos filmes de suspense.

‘Veneno nas veias’ é um livro de autoria de M. G. Scarsbrook, pseudônimo de Mathew Graham  Scarsbrook, escritor e roteirista canadense que atualmente vive na Inglaterra e que fez sucesso com o thriller histórico ‘A conspiração Marlowe’, que virou best-seller quando foi publicado no exterior.

O romance traz a história de Lucrécia Bórgia, filha do papa Alexandre VI, que viveu entre os séculos 15 e 16, e virou lenda na cultura ocidental por ter protagonizado histórias de lascívia e assassinatos, em meio a uma família movida por ambição e poder.

De origem espanhola, o papa exercia influência sobre os reinos da Europa, corrompendo príncipes, políticos, cardeais e bispos. Lucrécia, dona de beleza incomum, teria vivido relações incestuosas com o irmão César, que se torna um déspota ambicioso, fonte de inspiração para o embaixador Nicolau Maquiavel, também personagem do romance, que naquele momento escrevia sua obra capital, ‘O Príncipe’, referência em filosofia política.

Scarsbrook adota o ponto de vista de Lucrécia, colocando-a como narradora em primeira pessoa. É uma forma de humanizar essa personagem que ficou conhecida como uma das mulheres mais cruéis da história, sem haver, no entanto, provas cabais de seus crimes. Diz a lenda que Lucrécia guardava veneno em um anel para usá-lo contra seus inimigos.

Lucrécia já foi contada várias vezes no teatro, cinema e literatura. ‘Lucrécia Bórgia’ foi, por exemplo, título de uma peça do escritor francês Victor Hugo (1802-1885), em que ele destaca as orgias de que participavam todos os membros da família. O papa, aliás, vivia cercado de cortesãs.

O americano Mario Puzo (1920-1999) também escreveu ‘Os Bórgias’, sobre a família que envenenava pessoas sem escrúpulos, apoderando-se de seus bens, e acumulando fortunas nos cofres papais, impondo um poder que governou Roma por anos. A trajetória da família ambiciosa e corrupta também virou história em quadrinhos e se tornou série de TV. Lucrécia Bórgia é um personagem do imaginário popular.

 

Veneno nas veias: memórias de Lucrécia Bórgia,

M. G. Scarsbrook, Geração Editorial, 2010, SP, 335 págs.

 

Foto: Divulgação

O retorno do filho rejeitado pelo ditador

Luíz Horácio explora a linguagem do pampa (foto: Divulgação)

A Comissão da Verdade instalada na semana passada pela presidente Dilma terá a missão de reescrever a história do País no período de 1946 a 1988, tirando a limpo fatos e personagens envolvidos. É uma iniciativa sujeita a polêmicas e pressões, mas que resgata o direito do cidadão ter acesso a informações para formar livremente sua opinião.

Na literatura, o tema da ditadura militar, de 1964 a 1985, é fecundo. Os traumas, violações dos Direitos Humanos, as confabulações e atos de tortura formam o retrato de um Brasil que a cultura de massa ignorou e esqueceu, com exceção da literatura e do cinema.

Ainda hoje a produção literária repercute as angústias e enigmas desse período, como é o caso do romance ‘Pássaros Grandes Não Cantam’ (2010), do escritor Luíz Horácio Pinto Rodrigues, gaúcho de Quaraí, município da fronteira com o Uruguai. O livro completa uma trilogia com ‘Perciliana e o pássaro com alma de cão’ (2005) e ‘Nenhum pássaro no céu’ (2008).

A história se desenvolve em torno de Horácio, um estancieiro da região de Rosário e Livramento, no pampa gaúcho, que foi colaborador da ditadura militar. O livro desperta a curiosidade do leitor pelo fato de mostrar como pensa um ser que se constitui entre preconceitos, possessões, ódios e arrogâncias.

O romance também desnuda o preconceito contra os negros, que ainda hoje persiste na cultura, como herança arcaica dos tempos da escravidão, mas faz isso não sem explorar a relação ambígua que se coloca no confronto de raças no País. “Me parece que usted gosta deles, mas acha que não deve gostar?”, indaga o vaqueiro Amâncio a Horácio, referindo-se aos negros.

Essa relação ambígua permeia o romance, que se desdobra a partir de um caso de amor entre Horácio e Ana Maria, uma negra da estância vizinha, que engravida e por isso é expulsa da região, tendo de reconstruir a vida no Rio de Janeiro.

O retorno do filho que resultou da união pretensamente indesejada marca o tempo presente do romance, é quando Horácio começa a se defrontar com a verdade de sua existência. Armando, o filho rejeitado, surge na história como que para protestar contra a ausência de pai, uma carência que é um verdadeiro sintoma da cultura hoje.

O romance também tem um caráter regional, e por isso é construído em ‘gauchês’, com as expressões comuns do homem do pampa. Esse aspecto enriquece o livro com ironia, é uma contribuição para ilustrar o conhecimento de quem está cansado de linguagem globalizada que sufoca a subjetividade nos dias de hoje.

Pássaros Grandes Não Cantam,

Luíz Horácio, Global Editora, São Paulo, 2010, 220 págs.