Câmara Cascudo reconta as histórias tradicionais para crianças

Cascudo: raízes culturais do brasileiro

As histórias que os pais contam para os filhos são importantes na formação do indivíduo, concordam não apenas psicólogos e educadores, mas as pessoas de um modo geral. Ao se referir a essas narrativas, que dão um caráter heroico a fatos do cotidiano, cada um evoca suas próprias memórias, resgatando o sabor da infância, que tanto influi no presente sem que nos demos conta.

‘O chapelinho vermelho’, ‘Joãozinho e Maria’, ‘A festa no céu’, ‘A bela e a fera’, entre tantos outros contos, têm suas origens em sociedades antigas desde os gregos, ou mesmo antes – o mais antigo conto de criança registrado em um papiro tem 3,2 mil anos e pertenceu ao filho do faraó Ramsés Miamum, segundo o escritor potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), que reúne em ‘Contos tradicionais do Brasil’ 100 histórias narradas de acordo com a tradição oral do Nordeste.

Cascudo organizou as histórias em 12 categorias, como contos de encantamento, de exemplo, de animais, facécias [atos de pilhéria ou chacota], de adivinhação, entre outras, e escreveu ao fim de cada conto uma nota sobre sua origem histórica. É, portanto, um livro que interessa não apenas a quem estuda folclore e as produções da cultura, mas também tem curiosidade por conhecer as raízes do brasileiro. O título vale ainda como fonte para os pais que querem enriquecer a relação com as crianças, compartilhando histórias que dão asas à imaginação.

Para montar a coletânea, Cascudo ouviu as histórias das pessoas, seus conterrâneos, sem se limitar às pesquisas nos livros, que funcionaram como um complemento. Os contos têm um caráter universal, mas são contaminados pela cultura regional, espelhando valores que resultam do nosso processo histórico.  “O conto popular revela informação histórica, etnográfica, sociológica, jurídica, social. É um documento vivo, denunciando costumes, ideias, mentalidades, decisões e julgamentos”, escreve Cascudo no prefácio.

Malandragem se inspirou em Pedro Malazarte

O livro traz também seis episódios com Pedro Malazarte, personagem central da cultura ibérica desde os tempos da colonização, bastante popular e que foi uma figura de referência para a criação da mitologia em torno da malandragem no Brasil.

Num desses episódios, Malazarte encontra um excremento ainda fresco na estrada e o cobre com o chapéu, até que um gaiato surge cheio de curiosidade, a quem o trapaceiro conta ter o passarinho mais bonito do mundo debaixo do chapéu. Malazarte vende a ave por 20 mil réis para o curioso e o abandona na estrada sob pretexto de buscar uma gaiola. Mais do que na malandragem, histórias como essa estão na raiz da cultura do povo brasileiro, já que em nossas terras a frase “eu quero me dar bem” é um valor tão apreciado.

O leitor também encontrará contos puramente regionais, como ‘A causa das secas no Ceará’, que diz que “em priscas eras” os cearenses se desentenderam com o Bom Jesus, expulsando-o de volta a Portugal em uma jangada. Mas, por esquecimento, deixaram de fornecer água ao Bom Jesus que, diante da sede, bradou contra os cearenses: “ingratos e maus; vocês também não terão água quando tiverem sede”. As palavras foram acolhidas pelo Vento Leste, que então levou ao Estado a primeira seca.

Essa história foi contada a Cascudo por Eusébio de Souza, diretor do Museu do Estado do Ceará à época. É interessante notar que a relação entre ‘Bom Jesus’ e ‘Portugal’ cria uma indefinição de sutil ironia, situando a personagem do Bom Jesus como provável substituto do colonizador, que destruiu a natureza e criou um regime de violência e escravidão para impor sua cultura mercantilista.

Contos tradicionais do Brasil,

Luís da Câmara Cascudo, Editora da Universidade de São Paulo, SP, 1986, 316 págs.

Leia também sobre a correspondência de Câmara Cascudo e Mário de Andrade.

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